A Pluriversalidade na Busca do Estatuto da Filosofia Africana

 

Por: Ergimino Pedro Mucale

 

A questão que permeia este livro é atinente ao lugar da Filosofia Africana no ensino da Filosofia no Brasil e diz respeito ao estatuto da Filosofia Africana na Filosofia. Trata-se de uma indagação fundamental enquanto convite para a Filosofia fazer introspeção para inquerir-se a si mesma, reexaminar a sua própria historiografia e redefinir o seu devir numa contemporaneidade plural, condição de possibilidade para a sua sobrevivência.


A história da filosofia europeia, que se tem imposto como um empreendimento universal, confunde-se com uma luta darwiniana e maquiavélica de busca de protagonismo; a da Filosofia Africana, contrariamente, assemelha-se ao mito de Osíris, esta divindade ou figura mitológica egípcia protótipo do renascimento.

Esta última é a filosofia pioneira, quer no sentido mais genérico – filosofia enquanto empreendimento humano quer no sentido estrito filosofia enquanto conhecimento sistemático; se, por um lado, a África é o berço da humanidade, é natural que tenha sido lá onde os seres humanos começaram a filosofar e, por outro lado, cronologicamente os filósofos egípcios e etíopes antigos são bem mais antigos que os filósofos gregos antigos.

A Filosofia Europeia, no sentido genérico, pode ter sido fruto da admiração  e do espanto, de uma geração espontânea, mas no seu sentido estrito emerge das entranhas da Filosofia Africana, desenvolve-se como assassina desta e, a partir da Modernidade, marcada pela expansão mercantil e pelo «Iluminismo», ela torna-se uma ideologia ao serviço do Imperialismo.

O mito do «milagre grego», que defende a tese monogenética da Filosofia e nega a genialidade a qualquer outro povo que não o helénico, e o mito do negro naturalmente inferior, que recusa a racionalidade ao negro, são dos exemplos mais conhecidos da ideologização da Filosofia (europeia), da sua transformação num perspicaz instrumento de poder e dominação. Como instrumento de resistência, revolta e reinvenção, a Filosofia Africana contrapõe-se ao imperialismo e totalitarismo euro- norte-americano até ao triunfo dos africanos sobre o colonialismo e a reconquista das independências, evento que marca o primórdio de uma nova fase da inscrição africana na história da racionalidade.

O renascimento filosófico africano, ainda que real e promissor, não tem sido uma empreitada fácil nem mesmo no próprio continente africano, onde, além de outros factores, o eurocentrismo continua a impor-se como paradigma hegemónico. Quando Maurício de Novais Reis afirma que se a Filosofia Africana é subalternizada ou mesmo exclusa do Ensino de Filosofia no Brasil é devido à orientação etnocêntrica e eurocêntrica dos curricula brasileiros e defende a necessidade de se desconstruir e ultrapassar o paradigma eurocêntrico, simplista e imperialista, e adotar- se a pluriversalidade como paradigma, aponta um problema e um caminho comuns à diáspora africana e ao continente africano.

A Filosofia, em geral, e a Filosofia Africana, em particular, desenvolver-se-á genuinamente enquanto ultrapassar o eurocentrismo. A minha ideia de uma afrocentricidade complexa, de Severino Elias Ngoenha de paradigma libertário e de intercultura, de José Castiano de referencial de intersubjectivação e de Filomeno Lopes de filodramática, só para dar exemplos advindos da África de expressão oficial portuguesa, são esforços de denúncia e de indicação de vias alternativas para que a Filosofia Africana refloresça e enriqueça a história geral da Filosofia.

O seguimento da tese  ramoseana sobre a pluriversalidade da filosofia vai na mesma direcção. Ele defende a origem pluriversal da Filosofia, perpassa, na linha de Maurice Makumba, a história da invenção europeia e africana de África; sintetiza as correntes da filosofia africana contemporânea na prossecução de Henry Odera Oruka (acrescentando o ubuntuísmo, a afrocentricidade e a filosofia «feminina»), e faz uma resenha histórica do ensino de filosofia no Brasil tendo como fito a pluriversalidade do currículo da Filosofia.

O paradigma da pluriversalidade, incompatível com a colonização epistemológica e o epistemicídio, é uma condição fundamental para a anulação das relações de poder «interepistémicas» e para o estabelecimento de um verdadeiro diálogo e enriquecimento mútuo das diversas filosofias particulares que formam a Filosofia geral. Isso implica a libertação da Filosofia, a abertura, a reconciliação, o encontro, o acolhimento e o respeito à alteridade.

O lugar da Filosofia Africana na Filosofia contemporânea não é, então, menosprezível; é, pelo contrário, fundamental. Buscando o seu estatuto na Filosofia, a Filosofia Africana acabou encontrando o próprio estatuto da Filosofia; querendo salvar-se, apontou alternativas para a salvação da Filosofia: a Filosofia contemporânea ou será pluriversal ou não será mais digna de chamar-se Filosofia.