Por: A. M. Mendes

Os Teoremas da Incompletude de Gödel


 

Os teoremas da incompletude de Gödel são de difícil compreensão33. É preciso ter o domínio de 46 conceitos prévios juntamente com vários importantes teoremas preliminares, antes de alcançar os resultados principais. Dentre os 46 conceitos necessários para sua compreensão, já adiantamos cinco deles, que são: regras de formação, regras de transformação, linguagem/cálculo (sistema formal), metamatemática e consistência. Com estes cinco conceitos, precisamos ainda de mais dois para explicar de forma essencial em que consistem os teoremas da incompletude de Gödel. Não daremos uma explicação técnica porque necessitaria de todos os 46 conceitos. Os dois conceitos que nos faltam são o método da aritmetização e os números de Gödel.

 

O método da aritmetização foi fundamental para a construção da prova de Gödel, pois sua prova consiste em transformar uma sentença da linguagem comum para uma expressão aritmética única dentre várias dentro de um sistema formal. O método da aritmetização consiste em corresponder números à signos, à series de signos (fórmulas), e a séries de séries de signos (esquema-de-prova) que ocorrem no sistema formal; ele – o método da aritmetização – é uma espécie de construção de coordenadas matemáticas (Cf. BRAITHWAITE, 1992: 7). Esses números que são usados no método da aritmetização são únicos para cada signo elementar, fórmula ou prova; e servem de rótulo dos signos, fórmulas ou provas. Eles são chamados de números de Gödel34.

 

Tendo o método da aritmetização e a numeração de Gödel, a sentença: “esta sentença não é provável” pode ser codificada de modo a ser uma expressão aritmética. Neste sentido, seguiremos o simbolismo usado por Gödel em On Formally Undecidable Propositions of Principia Mathematica and Related Systems I para explicar os teoremas da incompletude.

 

Seja a sentença: “esta sentença não é provável em P” substituída pela variável g, e exprimida pela fórmula v Gen r, dentro de um sistema formal axiomático dedutivo P que seja capaz de expressar a aritmética dos números inteiros e que seja 𝜔-consistente35 (pressupondo que a sentença g já foi aritmetizada). Se a fórmula v Gen r for provada, significa que é provável que ela não é provável, logo não é provável; porém, foi provada, logo ela é provável. Mas, o que é que ela prova? Ela prova que não é provável. Como podemos notar, sempre cairemos neste jogo interminável de afirmação e negação, sem que possamos decidir entre uma e outra. A isto é chamado de “sentença indecidível”. E é precisamente isto que o primeiro teorema da incompletude de Gödel prova, a saber:

 

 



“Para toda classe recursiva36 𝜔-consistente c de fórmulas, corresponde uma classe-sinais r recursiva, tal que nem v Gen r nem Neg (v Gen r) pertencem a Flg (c) (onde v é a variável livre37 de r)”38 (GÖDEL, 1992: 57).

 

Com o acima colocado, entende-se que não há uma afirmação de v Gen r nem sua negação (Neg (v Gen r)) dentro do sistema formal P; isto é, essa fórmula expressa uma proposição irresolúvel, indecidível. Significa que a fórmula que expressa a proposição g, assim como as fórmulas que expressam os axiomas a partir dos quais a fórmula g pretende ser provada, não são demonstráveis dentro do sistema. Este resultado que diz que tanto a afirmação quanto a negação de uma fórmula não é decidível dentro de um sistema formal axiomático aritmético dedutivo não é um resultado aritmético, mas meta-aritmético. Significa que a matemática não é completa, o que nega aquilo que Hilbert acreditava acerca dela. Porém, este resultado do primeiro teorema da incompletude de Gödel não destrói o programa de Hilbert. Pelo contrário, o próprio Gödel acreditava que “existem métodos sistemáticos para a solução de todos os problemas”39 (GÖDEL apud WANG, 1996: 316)

 

É certo que as sentenças indecidíveis continuam irresolúveis dentro da matemática. Para resolve- las, é necessário sair do sistema matemático no qual se está a trabalhar e usar uma metalinguagem





    • a metamatemática – para achar a solução do problema, pois, conforme acreditavam Gödel e Hilbert, tal solução existe.



O segundo teorema da incompletude de Gödel, que é corolário do primeiro, prova a seguinte proposição:



Se c é uma dada classe de fórmulas recursiva e consistente, então a fórmula proposicional que estabelece que c é consistente não é c-provável; em particular, a consistência de P é improvável em P, sendo assumido que P é consistente (se não, claro, toda sentença é provável)40 (GÖDEL, 1992: 70).

 

Este teorema prova que um sistema formal axiomático dedutivo como a matemática, não pode provar sua própria consistência. Se ele provar sua própria consistência, imediatamente percebe-se que é inconsistente. Mas se ele for consistente, ele próprio não será capaz de provar sua consistência. Outra vez, a metamatemática é necessária para dar a prova de que a matemática é um sistema consistente. Há, no entanto, dúvidas se a metamatemática pode fornecer tais provas. Daí que alguns apelam à intuição, como Gödel as vezes o faz; no entanto, sem deixar de lado a metamatemática.

 

No que diz respeito as implicações filosóficas dos teoremas da incompletude de Gödel, temos encontrado muitas interpretações mal aplicadas – errôneas. Alguns, como os filósofos que defendem o pós-modernismo, sustentam que os teoremas da incompletude de Gödel fazem um apelo à irracionalidade, na medida em que negam que um sistema formal axiomático dedutivo aritmético possa provar sua própria consistência, mas faz o contrário: só pode provar sua própria inconsistência. Logo, afirmam eles, a irracionalidade (inconsistência) sobrepõe-se à racionalidade (consistência), pois provamos a irracionalidade, e não a racionalidade. Outros pós-modernistas, como Debray apud Sokal et Bricmont (1998: 178), usam o segundo teorema da incompletude de Gödel para fundamentar que, dado que não é possível um sistema formal provar sua própria consistência, também não é possível uma “... governação das pessoas pelas pessoas”41, e isso – acredita ele – é devido a razões “estritamente lógicas”. Corrigindo este erro, assinalamos o seguinte: os teoremas da incompletude têm uma implicação restrita aos sistemas formais contendo a teoria dos números (Cf. GÖDEL, 1957: 145). Fora disto, eles não são aplicáveis.

 

David F. Plummer, um não-matemático que ficou interessado pelos teoremas da incompletude de Gödel ao ler o livro de Nagel e Newman acerca da Prova de Gödel, enviou uma carta a Gödel pedindo que este respondesse-lhe algumas questões, pois ficou com a impressão de que os teoremas da incompletude eliminaram algumas obscuridades epistemológicas e queria saber se suas implicações filosóficas eram destrutivas ou niilísticas; também conjecturou que os teoremas da incompletude pudessem ser invocados para refutar o determinismo e justificar os acidentes. Gödel respondeu negativamente para as duas sugestões dizendo: “... as implicações filosóficas de meus teoremas são qualquer coisa menos niilísticas ou destrutivas. Sequer vejo qualquer conexão com liberdade ou acidente”42 (GÖDEL, 1967: 162).

 

Existem muitos filósofos que interpretam os teoremas da incompletude de Gödel de forma semelhante à de David Plummer, numa tentativa de fundamentar matematicamente a teoria do caos de Lorentz ou o princípio da incerteza de Heisenberg. Ora, os teoremas da incompletude de Gödel são muito restritos e, se existe alguma implicação filosófica que pode ser derivada deles é, conforme Gödel, a seguinte:



Os teoremas da incompletude] somente43 mostram que a mecanização da matemática, i.e., a eliminação da mente e de entidades abstractas, é impossível, se alguém quiser ter um sistema e fundamento satisfactório da matemática44 (GÖDEL, 1962: 176).

 

Significa que não podemos conceber a matemática como sintaxe lógica da linguagem (que é uma concepção puramente formal da matemática); mas que devemos considerar o papel da razão (e da intuição) na resolução de certos problemas matemáticos e que existem entidades abstractas na matemática, diferentemente do que pretendiam Carnap e Hilbert, pois ao conceber seu formalismo na matemática, consequentemente, a existência própria de entidades abstractas é negada.

 

O formalismo da sintaxe lógica da linguagem e o formalismo da metalinguagem de Hilbert é idêntico ao modo de pensar de uma máquina (computador). Os teoremas da incompletude de Gödel provam que estas máquinas não são capazes de decidir todas as questões teorético-numéricas, mesmo questões de um certo tipo muito simples (Cf. GÖDEL, 1962: 176). Mas os teoremas da incompletude, em contrapartida, não dizem o mesmo em relação à mente humana. Gödel não tinha uma prova de que a mente humana fosse superior a um computador.


 

BIBLIOGRAFIA

 

BRAITHWAITE, R. B. (1992). Introduction. In: On Formally Undecidable Propositions of Principia Mathematica and Related Systems I. Kurt Gödel. (1992). New York, Dover Publications.

 

BRICMONT, Jean et SOKAL, Alan (1998). Fashionable Nonsense: postmodern intellectuals abuse of science. New York, Picador.

 

FRANZÉN, Torkel. (2006). Gödel’s Theorem: an incomplete guide to its use and abuse. [s.l], [s.n].

 

GÖDEL, Kurt. (1957). Letter to Nagel. In: Kurt Gödel Collected Works vol. V. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Wilfried Sieg. (2003). New York, Clarendon Press.

 

. (1962). Letter to Leon Rappaport. In: Kurt Gödel Collected Works vol. V. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Wilfried Sieg. (2003). New York, Clarendon Press.

 

. (1967). Letter to David F. Plummer. In: Kurt Gödel Collected Works vol. V. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Wilfried Sieg. (2003). New York, Clarendon Press.

 

. (1992). On Formally Undecidable Propositions of Principia Mathematica and Related Systems I. New York, Dover Publications.

 

NAGEL, Ernst; NEWMAN, James. (1973). A Prova de Gödel. Rio de Janeiro, Perspectiva.

 

TIESZEN, Richard. (2011). After Gödel: platonism and rationalism in mathematics and logic. New York, Oxford University Press.

 

URQUHART, Alasdair. (2003). Review: Gödel collected works IV and V. Toronto, Review of Modern Logic.


WANG, Hao. (1996). A Logical Journey: from Gödel to philosophy. Massachusetts, The MIT Press-Cambridge.
image?w=192&h=1&rev=1&ac=1&parent=1LK9zqw8Q4HDF_Z80-PI_jTaThSrGENQP

33 Alguns lógicos e matemáticos que concordam com este facto são: James Newman e Ernest Nagel (Cf. 1973: 63), Torkel Franzén (Cf. 2006: 5), Richard Tieszen (Cf. 2011: 24) et Alasdair Urquhart (Cf. 2003: 2).

 

 

 

34 Isto pode ser feito da seguinte maneira (seguindo tanto o modo de Gödel quanto o de Nagel e Newman): (1) substituir os signos constantes (¬,∨, ⊃, ∃, =, 0, 𝑠, (, ), ", ") por números de Gödel de 1 a 10; (2) substituir as variáveis numéricas (x, y, z) por números de Gödel que são números primos maiores que 10; (3) substituir as variáveis sentenciais (p, q, r) por números de Gödel que são os quadrados dos números primos maiores que 10; e, (4) substituir as variáveis predicativas (P, Q, R) por números de Gödel que são os cubos dos números primos maiores que 10. A expressão (∃𝑥)(𝑥 = 𝑠𝑦) seria aritmetizada da seguinte maneira:

 

( ∃ 𝑥 ) ( 𝑥  =  𝑠 𝑦  )

 

↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ 8 4 11 9 8 11 5 7 13 9

 

35 Que pode ser provada – minimamente consistente.

 

36 “Uma função numérica-teorética 𝜙 é chamada recursiva, se existem umas séries finitas de funções numéricas- teoréticas 𝜙 1 , 𝜙2, … , 𝜙𝑛, que terminam em 𝜙 e têm a propriedade de que toda função 𝜙𝑘 das séries ou é recursivamente definida por duas das anteriores, ou é derivada de qualquer das anteriores por substituição, ou, finalmente, é uma constante ou a função sucessora 𝑥 + 1” (GÖDEL, 1992: 47). Isto é, a definição recursiva é uma extensão do método de definição da indução matemática em que os números naturais são definidos passo a passo, dizendo que, por exemplo, 5 é o sucessor imediato de 4, e 6 é o sucessor imediato de 5, e assim por diante.

 

37 Uma variável livre é uma variável que não tem quantificação, isto é, é indefinida.

 

 

 

38 Tradução nossa.

 

39 Tradução nossa.

 

 

 

40 Tradução nossa

 

41 Tradução nossa.

 

42 Tradução nossa.

 

43 Grifo nosso.

 

44 Tradução nossa.