Por: Ergimino Pedro Mucale

Este texto é uma contra-apresentação do livro «Filosofia Africana: da Sagacidade à Intersubjectivação – com Viegas» da autoria de um dos principais filósofos moçambicanos, José Paulino Castiano.

O livro em apreço compreende quatro partes: «porquê entre-vistas com Viegas?», «entrevistas sagaciosas com Viegas», «a quarta entre-vistas» e «a morte e o reviver do ubuntuismo». Como o próprio autor revela na introdução, a primeira parte é uma justificação das entrevistas feitas ao ancião Viegas (que passa por Viegas ser detentor de sabedoria filosófica); a segunda é transcrição das entrevistas e versa sobre variados temas relacionados com a história contemporânea de Moçambique (correspondendo ao interesse de a sagacidade estar mais virada para o presente e para o futuro e debatendo a experiência africana com a modernidade), a terceira fala da recepção da notícia do falecimento do sábio Viegas pelo autor e, finalmente, a quarta parte é uma proposta da modernização da filosofia prática do ubuntuismo (que deve sair de uma lógica comunitarista para uma lógica cosmopolita).

Castiano adopta e exponencia o método da sagacidade iniciado pelo filósofo queniano Henry Odera Oruka. Este último propôs a sagacidade filosófica em oposição e superação a Tempels, que, na tentativa de justificar a existência da filosofia africana, acabou objectivando os sagazes (sages), reduzindo-os de sujeitos a informantes e de críticos a descritores do mundo. Entretanto, o esforço de Oruka de desmitificar a sagacidade redundou numa re-mistificação, porquanto ele reconhece a competência dos sagazes apenas em assuntos relativos às tradições africanas («questões metafísicas»). Castiano desmitifica o espectro da sagacidade filosófica em dois sentidos: 1) actualidade dos temas – reconhecendo que os sábios filósofos podem dissertar sobre temáticas do presente e do futuro; 2) horizonte – assumindo que os sábios filósofos podem debater tanto problemas locais quanto globais.

O subtítulo do livro está justificado: a filosofia africana – que tinha saído da objectivação de Tempels para a sagacidade de Oruka – deve, agora, dar um salto qualitativo da sagacidade de Oruka à intersubjectivação de Castiano (que deve ser entendida como processo de diálogo ou debate entre sujeitos epistémicos que se reconhecem mutuamente como válidos e dignos), mas por via da sagacidade. Neste sentido, este escrito completa a trilogia sobre a intersubjectivação que começa com «Referenciais da Filosofia Africana» (2010) e continua com «Os Saberes Locais na Academia» (2014). O primeiro livro, criticando os referenciais de objectivação e de subjectivação, está em busca da afirmação da intersubjectivação como referencial ideal para a filosofia africana contemporânea. O segundo investiga condições e possibilidades da legitimação dos saberes locais na academia. O que constitui objecto destas linhas pretende ser exemplo de como o filósofo profissional pode «fazer sobressair o sujeito por detrás do “informante” ou do “fantasma” na filosofia africana», registar ou resgatar saberes locais e endógenos que serão posteriormente usados no ensino (Castiano, 2015: 17; 20).

«Filosofia Africana: da Sagacidade à Intersubjectivação – com Viegas» procura proporcionar uma proposta teórico-metodológica para fundamentar as condições de existência de uma filosofia moçambicana aculturada e universalocal. O pressuposto é de que uma das tarefas da filosofia moçambicana (africana) contemporânea, o maior desafio da intersubjectivação, é trazer para o espaço público e académico os saberes locais, as tradições africanas expressas pelos sábios. Castiano parte da convicção de que o crescimento da filosofia africana depende da interacção entre os filósofos africanos profissionais e seus colegas da sagacidade filosófica a partir dos espaços públicos onde estes actuam e numa predisposição para um debate crítico e actual.

A interacção intra-africana entre filósofos profissionais e seus pares sagazes, a que Castiano chama de «diálogo horizontal», mais do que a amplamente desenvolvida interacção entre filósofos profissionais africanos com o Ocidente («diálogo vertical»), é necessária para a legitimação da filosofia africana (moçambicana) no espaço público e académico e sua descolonização em relação à filosofia ocidental. Este diálogo emancipa os saberes locais, que até aqui ocupam uma posição periférica e subalterna, e apela para a nobreza de espírito que o filósofo deve ter ao agir. Com efeito, a lógica peculiar da sagacidade é a da primazia da ética sobre o conhecimento, da axiologia sobre a epistemologia. Isso significa que o sujeito da nova filosofia africana se engaje com valores como a justiça. Aliás, parece ser isso que justifica que Viegas seja tomado, nesta obra, como um sage de referência: ele é admirado pelo seu humanismo, pelas suas qualidades e pelos valores que soube cultivar, além de possuir saberia filosófica.

Uma avaliação crítica

É sem dúvida que o livro de Castiano é um contributo valioso para a inscrição da filosofia moçambicana na filosofia afrolusófona, na filosofia africana como um todo e na filosofia dita universal. Num contexto marcado por um capitalismo selvagem, em que o mais forte engole o mais fraco, a intersubjectivação proposta por Castiano se mostra pertinente. Se internamente o filósofo africano deve resistir ao tradicionalismo e ao antropologismo, como defende Castiano, presumo que, igualmente, deve opor-se ao universalismo e globalismo simplistas, que camuflam retórica de dominação (Mucale, 2013).

Ao defender o paradigma da intersubjectivação, Castiano toca um aspecto importante para a sobrevivência e emancipação ou descolonização da Filosofia Africana, a comunicação, na senda de outros grandes nomes como Paulin Hountondji (defende a necessidade de diálogo entre africanos), Filomeno Lopes (fala da filodrmática, que é comunicação interperiférica) e Severino Ngoenha (fala da necessidade de filosofar em equipa e com filósofos de outros quadrantes do mundo).

Se o diálogo é fundamental para toda a filosofia e para a filosofia africana em particular, mais urgência surge para o caso da jovem filosofia moçambicana. Os principais representantes desta filosofia falam do diálogo e o recomendam sobretudo aos principais actores políticos do país, mas eles mesmos o evitam. Os nomes e pensamentos dos colegas filósofos profissionais nacionais não devem simplesmente ser mencionados (e mesmo isso acontece muito pouco); devem ser convocados para o debate, para a reflexão crítica e dialéctica. Castiano deu mais um passo, dialogando com o sábio Viegas – para começar, o diálogo vale por si. Não devemos permitir que outro sagaz morra e seja enterrado com todo o seu saber que, aliás, é também nosso. Ousemos dialogar!

Gostaria de levantar algumas questões que a obra suscitou em mim. Em primeiro lugar, a relação entre este novo livro e os dois anteriores do mesmo autor têm simplesmente uma relação de continuidade ou também de autocrítica do autor? Dois exemplos: i) Em «Referenciais da Filosofia Africana», Castiano propõe (ao falar daquilo de que a filosofia africana devia-se emancipar) que desapareça a filosofia africana para ficar o filósofo africano. Em «Filosofia Africana» fala recorrentemente da filosofia moçambicana. Estará o autor a fazer autocrítica ou a assumir que a filosofia “continental” deve dar lugar às filosofias “universal” e “nacional”? ii) N’«Os Saberes Locais na Academia», Castiano enfatiza a intersubjectivação no lugar da interculturalidade. Por exemplo, diz: “A legitimação dos saberes locais/endógenos no contexto das academias verdadeiramente africanas, só poderá efectivar-se através de um diálogo entre-sujeitos epistémicos (inter-sujeitos) que ultrapassem a tentação objectivadora do sujeito, que está já no interior do inerente conceito inter-culturalidade”. Entretanto, com Viegas, parece que a cultura pesa mais sobre o indivíduo (Viegas vê-se como intérprete da cultura, ex. ao definir liberdade a partir da weltanschaung macua). Que dizer disso?

Em segundo lugar, embora Castiano tenha tentado suplantar Tempels e Oruka, na prática, o seu método por vezes compromete o diálogo, induzindo o interlocutor, socrática e tempelsiamente, ao embrutecimento e ao concordismo. Por exemplo, quando falam da diferença entre a instrução e a educação, Castiano (2015:137) questiona: Então está de acordo com a nossa definição de filosofia? para nós a educação é, resumindo, transmissão de valores! A.V.: Exactamente! J.P.C.: E um valor de tipo justiça: uma pessoa tem que ser justa. A.V.: Exactamente!

Em terceiro lugar, é certo afirmar que Castiano evitou o complexo de superioridade que ser um filósofo profissional a entrevistar um «filósofo informal» suscitaria. Igualmente não revela ter enfrentado o dilema cultural que, tendencialmente, coloca quase sempre o mais novo na posição de escuta obediente ao mais velho. Todavia, Castiano questiona pouco as verdades «já feitas» reveladas por Viegas, algumas das quais não verosímeis, sobretudo quando fala da Igreja e da fé. Isso ofusca a necessária distinção entre o jornalista e o filósofo profissional aplicador da metodologia da sagacidade.

Para terminar, felicito Castiano por esta obra, que aborda temáticas pertinentes e actuais de forma muito simples embora problemática. Faço votos para que o desiderato de Castiano de os saberes locais/endógenos serem legitimados na academia se realize a breve trecho. Auguro que concomitantemente à legitimação dos saberes locais, o mundo da vida africano legitime, sagaz e intersubjectivamente, os saberes académicos. 

Referências Bibliográficas

CASTIANO, José P. Referenciais da Filosofia Africana: em Busca da Intersubjectivação. Maputo: Ndjira, 2010.

_______________. Os Saberes Locais na Academia: Condições e Possibilidades da sua Legitimação. Maputo: Educar, 2014.

 _______________. Filosofia Africana: da Sagacidade à Intersubjectivação – com Viegas. Maputo: Educar, 2015.

MUCALE, Ergimino Pedro. Afrocentricidade: Complexidade e Liberdade. Maputo: Paulinas, 2013.