Este artigo tem como tema O Convencionalismo de Henri Poincaré e Pierre Duhem. Aborda sobre o convencionalismo, especialmente o de Poincaré e Duhem, é relevante na medida em que este posicionamento desempenhou um papel crucial nos séculos XIX e XX, colocando em causa as noções comuns de ciência e de facto científico.
 
Antes do convencionalismo de Poincaré e Duhem, a ciência era tida como algo universalmente dado e natural, e seus princípios eram tidos como insubstituíveis. Com o surgimento das geometrias não-euclidianas, Poincaré e Duhem conseguiram desmascarar essas noções habituais de ciência e factos científicos, estabelecendo uma nova visão de ciência que estipula que ela, assim como seus princípios, são produtos de convenções humanas. Neste sentido, surgia no século XX uma nova forma de ver a ciência, chamada de convencionalismo, que até nos dias actuais encontra-se vigente em algumas comunidades científicas, pois esta corrente também tem seus opositores.

 
Sendo assim, nosso trabalho apresenta relevância na medida em que aborda sobre este tema actual e controverso que abala com os fundamentos da ciência e da matemática, e também na medida em que procura sintetizar as ideias principais de dois grandes convencionalistas do século passado de modo a evidenciar a essência deste movimento.
 
Pretendemos analisar os factores histórico-científicos que impulsionaram o surgimento do convencionalismo de Poincaré e Duhem. E, de modo específico: conceptualizar a convenção de modo generalizado; apresentar o surgimento das geometrias não-euclidianas como condicionante para a emergência do convencionalismo de Poincaré e Duhem; e, explicar o carácter moderado do convencionalismo de Poincaré e Duhem.

 
Para a realização do artigo usaremos o método bibliográfico, que consiste na recolha e exame de obras científicas referentes ao tema. O método é suportado pelas técnicas de hermenêutica e de comparação que consistem, respetivamente, na interpretação e analogia dos conteúdos relacionados ao tema em debate neste artigo.
 
 

O CONVENCIONALISMO DE HENRI POINCARÉ E PIERRE DUHEM

 

 Conceito Geral de Convenção.

 
No dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano (2007: 207) o convencionalismo é concebido como qualquer doutrina segundo a qual a veracidade de algumas proposições de determinadas áreas da ciência deriva de acordos comuns ou entendimento entre aqueles que utilizam tais proposições, isto é, entre os cientistas de tais ramos da ciência.
 
Para esclarecer o conceito de convenção, Abbagnano (2007: 207) faz referência à obra de Platão chamada República, onde as leis humanas, leis que regem a sociedade humana, são tidas como convenções, cujo objectivo é impedir que os mais fortes tirem proveito do direito natural que lhes dá a força.
 

 
Na colocação acima apresentada, encontramos dois polos: as convenções e a natureza, isto é, aquilo que é aceite mediante um acordo estabelecido entre os homens, e aquilo que é independente do acordo ou vontade dos homens. A força do mais forte é algo natural, pois lhe foi dada pela natureza. As convenções ajudam o homem a limitar essa força dada ao homem pela natureza, colocando regras de conduta entre os homens.
 
 

Surgimento do Convencionalismo de Poincaré Através da Descoberta das Geometrias não-euclidianas.

 
 
A primeira publicação científico-filosófica de Poincaré tratava da equivalência epistemológica entre as geometrias euclidianas e não-euclidianas. Segundo Philot (2015: 16), a doutrina convencionalista de Poincaré depende do estabelecimento dessa equivalência.

 
A geometria euclidiana perdurou por mais de mil anos como a única capaz de representar matematicamente o espaço. Somente no início do século XIX, com os trabalhos individuais de matemáticos como Riemann, Gauss, Bolyai, e Lobachevsky, tivemos o surgimento de novas formas de representação geométricas do espaço. Essas geometrias surgiram precisamente pela negação do quinto axioma da geometria euclidiana, que dizia o seguinte:
 
 
“E, caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos interiores e do mesmo lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas retas ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos” (EUCLIDES, 2009: 98).

 
Com a negação deste axioma, Riemann por exemplo, conseguiu desenvolver uma geometria em que o número de paralelas que podem ser traçadas a uma reta dada fosse nenhuma, isto é, impossível traçar uma paralela a uma reta dada (ao passo que na geometria de Euclides era possível traçar somente uma), e na geometria de Lobachevsky é possível traçar infinitas linhas paralelas.

 
Poincaré estudou este fenómeno e concluiu que “os axiomas geométricos não são juízos sintéticos a priori nem factos experimentais; são convenções. Nossa escolha entre todas as convenções possíveis é guiada por facto experimentais, mas continua livre e é limitada apenas pela necessidade de evitar a contradição” (POINCARÉ apud ABBAGNANO; 2007: 207).
 
A conclusão indicada acima surge no pensamento de Poincaré por causa dessa revolução feita na geometria euclidiana, isto é, se foi possível negar um axioma da geometria euclidiana e criar novos axiomas em seu lugar e ainda assim termos resultados satisfatórios na matemática e na ciência, então tais axiomas são convenções, podem ser escolhidos conforme convir, dependendo da situação apropriada. Foi isto que Riemann, Lobachevsky, e outros, fizeram na geometria: escolheram novos princípios, novas convenções que acharam adequadas para seus fins (tendo em conta a não-contraditoriedade dos novos princípios adotados).
 

O Convencionalismo Moderado de Duhem e Poincaré.

 
Uma questão legítima que deve ser colocada é a seguinte: se os axiomas, princípios, da geometria são uma convenção, será que a ciência no seu todo também seja uma convenção? Houve várias tentativas de resposta para esta questão, sendo que uma das que mais interessou Poincaré foi a de Edouard Le Roy. Segundo Reale e Antiseri (1991: 411), Le Roy defendeu um convencionalismo exasperado na teoria da ciência, afirmando que leis e teorias científicas têm carácter convencional, tanto que é inútil todo seu trabalho de verificação com a intenção de determinar uma dada objetividade nas próprias teorias. Para Le Roy, aquilo que nós chamamos de “algo natural” no ponto 1 deste trabalho, não passa de algo elaborado e construído pelas categorias do cientista, onde tais categorias definem o próprio facto.
 
 
 
“Exatamente como correção a tal convencionalismo extremado o físico Pierre Duhem (1861-1916) e o matemático Henri Poincaré (1854-1912) criaram uma forma de convencionalismo moderado, que foi e continua sendo uma teoria da ciência influente e fecunda” (REALE; ANTISERI; 1991: 411).
Poincaré concorda com Le Roy quando este afirma que a ciência é uma norma de acção. No entanto, para Poincaré, a ciência não deve limitar-se somente a isso. Essas normas que compõem a ciência são convenções arbitrárias, isto é, convenções que indicam limites e condições em que dados factos ocorrem ou não ocorrem, têm êxito ou não. A ciência em Poincaré prevê, e por isso pode ser vir de norma de acção. Por exemplo: quando dizemos que a água entra em ebulição ao atingir os 100 graus celsius, e alguém aquece a água até que ela atinja 100 graus celsius e vê que de facto ela começou a entrar em estado de ebulição.

 
Com o exemplo acima, podemos ver que se nega a tese de Le Roy segundo a qual o cientista cria o facto. Para Poincaré, “o cientista, portanto, não cria os factos: os factos existem em estado de factos brutos. E o cientista faz alguns desses factos brutos tornarem-se factos científicos” (POINCARÉ apud REALE; ANTISERI; 1991: 413).

 
A experiência é a fonte da verdade. Uma teoria só é verdadeira, afirma Duhem apud Reale e Antiseri (1991: 415) quando representa de modo satisfatório um conjunto de leis experimentais, e uma teoria é falsa quando não concorda com as leis experimentais. Para Duhem, o único critério de verdade de uma teoria física é a concordância com a experiência. No entanto, a teoria física não deixa de ser um conjunto convencional, pois é um conjunto de proposições matemáticas. Isto é, a teoria física é convencional porque é matemática, mas é verdadeira porque concorda com a experiência – é uma convenção que concorda com a experiência (é convenção porque é teoria). Sobre este último detalhe, Duhem afirma o seguinte:

 
A teoria física é construção do intelecto humano. E ela “não nos dá nunca a explicação das leis experimentais e não nos revela em caso algum as realidades que se ocultam por trás das aparências sensíveis. Mas, quanto mais se aperfeiçoa, mais percebemos que a ordem lógica em que ela dispõe as leis experimentais é o reflexo de uma estrutura ontológica” (DUHEM apud REALE; ANTISERI; 1991: 415).

 
O que encontramos no mundo é que a natureza está sempre a produzir, sempre a revelar fenómenos outrora ocultos ao homem e o homem que não se cansa de compreender e teorizar sobre ela.
 

CONCLUSÃO

 
 
De modo generalizado, o convencionalismo é tido como qualquer doutrina segundo a qual a veracidade de certas proposições de determinada área da ciência deriva de acordos comuns ou entendimento mútuo entre aqueles que utilizam essas proposições em tal área da ciência.

 
Em jeito de exemplo de proposições consideradas válidas em determinada área da ciência, tomamos a geometria euclidiana e o surgimento de seu oposto: as geometrias não-euclidianas. A geometria euclidiana perdurou por mais de mil anos como a única capaz de representar matematicamente o espaço. Somente no início do século XIX, conforme explicamos, tivemos o surgimento de novas formas de representação geométricas do espaço. Essas geometrias surgiram precisamente pela negação do quinto axioma da geometria euclidiana.

 
Com o surgimento das geometrias não-euclidianas, Poincaré descobriu que os axiomas geométricos não são juízos sintéticos a priori nem factos experimentais, mas sim convenções. No entanto, não generalizou a convenção a ponto de dizer que toda ciência é uma convenção. Para ele, há algo de natural e independente do homem na ciência: os factos empíricos. Neste sentido, Poincaré segue uma linha de convencionalismo moderado que defende que nossa escolha entre todas as convenções possíveis é guiada por facto experimentais, mas continua livre e é limitada apenas pela necessidade de evitar a contradição.

 
Duhem é aquele que melhor explica o carácter convencional no contexto físico-experimental, afirmando que a experiência é a fonte da verdade, e que uma teoria só é verdadeira quando representa de modo satisfatório um conjunto de leis experimentais. Assim sendo, o oposto também é válido, a saber: uma teoria é falsa quando não concorda com as leis experimentais. Conforme explicamos, Para Duhem, o único critério de verdade de uma teoria física é a concordância com a experiência. No entanto, a teoria física não deixa de ser um conjunto convencional, pois é um conjunto de proposições matemáticas. Isto é, a teoria física é convencional porque é matemática, mas é verdadeira porque concorda com a experiência – é uma convenção que concorda com a experiência.
 
 
 
 

BIBLIOGRAFIA

 
 
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

 
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo, PAULUS, 1991, vol. 3.

 
EUCLIDES. Os Elementos. São Paulo, UNESP, 2009.
 
 
PHILOT, Andre Carli. A Função e Natureza das Convenções e Hipóteses Segundo o Convencionalismo Francês da Virada do Século XIX para o XX: relações entre ciência e metafísica nas obras de Henri Poincaré, Pierre Duhem e Edouard Le Roy. Rio de Janeiro, Universidade do Estado de Rio de Janeiro, 2015.
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