Por: A. M. Mendes

A Matemática como Sintaxe Lógica da Linguagem


Hans Hahn (1980: 39) concorda que não é possível dar fundamentos empíricos a posteriori que provem que 1 + 1 é sempre igual a 2. Ainda assim, não aceita que haja necessidade de uma outra fonte de conhecimento ou intuição que sirva para aceder aos factos matemáticos.

Como forma de resolver essa dificuldade de conciliar o empirismo com a validade a priori da matemática, Hahn (1980: 42) conclui que, se por meio da experiência a posteriori não conseguimos conhecer as proposições da matemática, não é necessário que haja uma outra fonte que seja capaz de conhecer tais proposições, pois elas se revelam como sendo proposições sem conteúdo algum porque são universalmente válidas, i.e., elas não afirmam algo sobre um determinado objecto. Hahn desenvolve sua argumentação nos seguintes termos:

Se de algum modo sucedi em clarificar o papel da lógica, devo ser agora muito breve sobre o papel da matemática. As proposições da matemática são exatamente do mesmo tipo que as proposições da lógica: elas são tautológicas 13, elas dizem absolutamente nada acerca dos objectos que queremos falar, mas concernem somente à maneira pela qual queremos falar deles 14 (HAHN, 1960: 158).


Com o acima citado, percebe-se que a proposição 1 + 1 = 2 não diz algo sobre o mundo, mas sim representa uma forma ou regra segundo a qual falamos sobre o mundo. Assim, a necessidade de uma faculdade para conhecer os factos matemáticos é descartada. Por consequência disto, a matemática passa a ser considerada como “… um sistema de sentenças auxiliares sem conteúdo ou objecto”15 (CARNAP apud GÖDEL, 1953/59a: 335).

É com Carnap que esta concepção da matemática é mais desenvolvida. Tanto Hahn quanto Carnap pretendiam conciliar o empirismo estrito com a validade a priori da matemática. Gödel (1953/9a: 335) chamou este ponto de vista de “programa sintático”. O programa sintático tem como principal objectivo reduzir a matemática à sintaxe lógica da linguagem. Ou, colocando nos termos de Gödel, o programa sintático pretendia

construir a matemática como sendo um sistema de sentenças válidas independentemente da experiência, sem usar a intuição matemática16 ou referir a qualquer objecto ou facto matemático”17 (GÖDEL, 1953/9a: 335).


Para melhor explicação da proposta de redução da matemática em sintaxe lógica da linguagem, é necessário considerar o conceito de “sintaxe lógica”. Ela – a sintaxe lógica – é um sistema de conceitos que explicam as fórmulas e as relações18 entre as fórmulas, assim como suas regras de formação19 e de transformação20.

Conforme Carnap (2000: 1), a sintaxe lógica de uma linguagem é a teoria formal das formas linguísticas dessa linguagem, isto é, ela é a colocação sistemática das regras formais que governam essa linguagem juntamente com o desenvolvimento das consequências que seguem de tais regras. Nesta linha, a matemática, para o Círculo de Viena, é exactamente isto – um sistema de regras formais21.

Carnap (2000:1) acrescenta que tais regras, e tudo que é dito ser formal, não faz referência nem ao significado dos símbolos, nem ao sentido das expressões, mas somente refere aos tipos e ordens dos símbolos a partir dos quais as expressões são construídas.

Sendo a sintaxe lógica de uma linguagem um sistema de regras formais sobre tal linguagem, a construção dessas regras deveria ser um assunto fundamental e primordial. No entanto, Carnap (2000: xv) não concorda com nossa colocação. Segundo ele, nós temos total liberdade para construir nossas formas de linguagem22; e, tanto as regras de formação quanto as regras de transformação devem ser escolhidas de forma arbitrária. Este ponto de vista é chamado de “Princípio de Tolerância”. O Princípio de Tolerância diz o seguinte:

Em lógica não há morais. Cada um está em liberdade para construir sua própria lógica, i.e., sua própria forma de linguagem, conforme desejar. Tudo que é exigido dele é que, se ele quiser discuti-la, deve afirmar seus métodos claramente, e dar regras sintáticas em vez de argumentos filosóficos 23 (CARNAP, 2000: 52).


Se Carnap diz que as regras de sintaxe lógica são construídas com total liberdade conforme vimos, então ele comete um contrassenso quando estabelece algumas condições para a construção das regras de sintaxe lógica para a linguagem-sintaxe I (CARNAP, 2000: 11). Para melhor compreensão, expliquemos os aspectos fundamentais da linguagem-sintaxe: a linguagem-sintaxe é o sistema onde desenvolvemos a sintaxe de uma linguagem.

A linguagem-sintaxe diz respeito a uma outra linguagem chamada linguagem-objecto. Carnap (2000: 3) propõe construir duas linguagens-sintaxe, nomeadamente, linguagem I e linguagem II; e coloca condições para a construção das regras de formação e transformação para ambas, a saber: para a linguagem I, as regras devem ser finitárias24; ao passo que para a linguagem II, admite-se também a existência de regras transfinitas25. É neste sentido que acusamos Carnap e negamos que haja total liberdade na construção das regras sintáticas, pois há certas condições, como estas referidas pelo próprio Carnap, que devem ser levadas em conta. Neste sentido, a liberdade não é total como queria Carnap, mas relativa.

Um problema que surge com a linguagem-sintaxe diz respeito ao modo de expressar correctamente as regras, definições e sentenças de uma linguagem sem que haja necessidade de uma “metalinguagem”26 para tal, pois isso implicaria uma terceira metalinguagem para explicar a sintaxe daquela metalinguagem, e assim até ao infinito.

Carnap (2000: 3) nega isto, e tenta elaborar a linguagem I exprimindo sua sintaxe dentro dela mesma, ignorando os resultados dos teoremas da incompletude de Gödel27, assumindo que o medo do surgimento de contradições aqui não é justificado porque há uma condição que permite que essa linguagem expresse sua sintaxe dentro dela mesma, a saber: se a linguagem não for suficientemente rica em seus modos de expressão.

Para Carnap (2000: 11) a linguagem I não é suficientemente rica, por isso ela pode expressar sua sintaxe dentro dela mesma sem medo de surgirem contradições ou antinomias. No entanto, o mesmo Carnap (2000: 29) comete um segundo contrassenso por nós identificado em relação a colocação anterior, afirmando que a linguagem I é suficientemente rica e que existem sentenças lógicas irresolúveis dentro dela28.

Analisando num sentido amplo, a sintaxe lógica de uma linguagem é a mesma coisa que a construção e manipulação de um cálculo. E, conforme Carnap (2000: 5), toda disciplina matemática bem determinada é um cálculo. No entanto, Carnap reconhece que a linguagem é algo que vai além do cálculo. Porém, a sintaxe lógica trata a linguagem somente enquanto cálculo; isto é, limita-se aos aspectos formais da linguagem, deixando de lado as preocupações com o conteúdo da linguagem, ou com aspectos sociais ou psicológicos, etc.

Tendo dito isto, voltemos ao ponto inicial sobre o empirismo estrito e a validade a priori da matemática. Considerando a matemática como sintaxe lógica da linguagem, a aceitação de tais regras já é pressuposta pelo usuário da linguagem, ou seja, a aceitação é a priori. Com isto, o conceito de “a priori” ganha uma outra conotação, que não envolve mais a razão ou intuição, mas deriva de uma visão empirista pura da matemática.

BIBLIOGRAFIA

CARNAP, Rudolf. (2000). Logical Syntax of Language. London, Routledge.

GÖDEL, Kurt. (1953/9a). Is Mathematics Syntax of Language?. III. In: Kurt

Gödel Collected Works vol. III. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Robert Solovay. (1995). New York, Oxford University Press.

GOLDFARB, Warren. (1995). Introductory Noto to 1953/9. In: Kurt Gödel Collected Works vol. III. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Robert Solovay. (1995). New York, Oxford University Press.

HAHN, Hans; NEURATH, Otto; CARNAP, Rudolf. (1986). A Concepção Científica do Mundo – O Círculo de Viena. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Trad. Fernando Pio de Almeida Fleck. Sergique, Universidade Federal de Sergique.




10 Usamos a expressão “experiência a posteriori” porque neste trabalho falamos também de um outro tipo de experiência que contrasta com a que é defendida pelo positivismo lógico; falamos da experiência a priori, que lida com conceitos. Cf. pp. 31-31 deste trabalho.

11 Por exemplo: hoje podemos deixar uma cadeira num dado lugar, e no dia seguinte quando observarmos novamente aquela cadeira, percebermos que se distanciou alguns centímetros do lugar em que foi deixada (devido a algum factor exterior a ela, como o vento, etc.).

12 Tradução nossa.

13 Proposições tautológicas são aquelas que são universalmente válidas.

14 Tradução nossa.

15 Tradução nossa.

16 Por enquanto, adiantamos que a intuição matemática é uma faculdade idêntica à percepção, que permite-nos conhecer objectos e factos da matemática (Cf. GOLDFARB, 1995: 326).

17 Tradução nossa.

18 Se uma sentença contradiz a outra, ou se não são compatíveis; se uma sentença é logicamente deduzível de outra ou não, e assim por diante (Cf. CARNAP, 2000: 2).

19 As regras de formação são as chamadas “regras sintáticas”, que determinam em que condições uma expressão – uma série finita de símbolos – é considerada uma sentença dentro de uma dada linguagem. Exemplo da estrutura de uma regra de formação: “uma expressão dentro desta linguagem é chamada de sentença quando ela consiste do modo x e y, de símbolos p e q, ocorrendo na ordem z e r” (Cf. CARNAP, 2000: 4).

20 As regras de transformação são também chamadas de “regras de inferência” ou regras de dedução. Elas determinam em que condições uma sentença é deduzível da outra. Por exemplo: “se uma sentença é composta de símbolos combinados de tal e tal modo, e se outra é composta de símbolos de tal e tal modo diferente, então a segunda pode ser deduzida da primeira” (Cf. Carnap, 2000: 4).

21 Explicando alguns detalhes sobre as regras da sintaxe lógica de uma linguagem, Carnap afirma que “as sentenças, definições, e regras da sintaxe de uma linguagem estão preocupadas com as formas dessa linguagem” (CARNAP, 2000: 3).