1. Obstáculos na produção do conhecimento científico

Primeiro importa dizer que obstáculo epistemológico foi o nome que Bachelard utilizou para baptizar tudo que se insere no conhecimento não questionado, todos os pontos onde o progresso científico estanca, regride ou fica estagnado. Mas esse empreendimento de detectar objectos que estacam o progresso científico não começa com ele, pois na antiguidade, Platão (século IV a.C.) já dizia que o senso comum, apoiado na experiência sensível, não permite chegar ao verdadeiro conhecimento, ao qual só podemos aceder através da razão e Descartes (Séc. XVII) colocou em causa os dados dos sentidos, afirmando que só podemos confiar na razão para atingirmos o verdadeiro conhecimento.

 

O problema do pensamento em Bacon (1561-1626) consiste na crítica ao comportamento da ciência de sua época, e de épocas passadas, que não evoluía, que não apresentava operabilidade nenhuma à vida humana e que vivia numa estagnação completa e relata essa constatação, que está relacionada directamente com que ele definiu como ídolos, e sugere uma nova visão do método da indução, como a possibilidade de superar o estancamento da ciência. August Comte foi o precursor do positivismo, já armava ser a ciência o paradigma do conhecimento. Sem ciência, portanto o conhecimento não se constrói, já que a ausência desse paradigma, segundo Kuhn, impediria o acesso às verdades do mundo natural. A geração de conhecimento se daria, em contrapartida, dentro de momentos de domínio de determinados paradigmas, denominados de ciência normal, em que o consenso dos homens da ciência diante de certas teorias conduzissem suas pesquisas por caminhos congruentes.

 

Kuhn contraria o falsificacionismo proposto por Popper, que havia construído a visão do método científico baseado no racionalismo crítico e também no conhecimento de forma geral, avançando por meio das conjecturas e refutações que criavam sempre verdades ditas provisórias. Tais verdades poderiam sempre ser revistas ou revogadas com o surgimento de evidências contrárias. Não obstante, Lakatos defende a irrefutabilidade das teorias científicas, que, dessa forma, não seriam modicadas ao longo do tempo de forma completamente livre. A manutenção do conhecimento científico estaria, portanto, na resistência de determinadas teorias e em regras de poder que orientariam a pesquisa científica. Assim, a ciência se constituiria de uma sucessão de teorias com partes em comum, ao que o autor denomina programa de pesquisa científica. Por sua vez, Feyerabend diz que não há um único método, mas sim uma pluralidade de métodos e o empreendimento para construção do conhecimento cientifico é uma acção anárquica onde os métodos de produção são totalmente subjectivos. Sousa Santos por sua vez, defende uma segunda ruptura para a construção do conhecimento cientifico, sendo a primeira a proposta bachelardiana que buscava se par a ciência do senso comum e a segunda sendo proposta sua para se romper com o rompimento proposto por Bachelard, pois para este filosofo do senso comum enriquece a ciência.

 

Dessa forma, podemos constatar que muitos expoentes da modernidade, como Popper, como Kuhn e a sua noção de paradigma e revolução científica, Lakatos e os programas de pesquisa, Feyerabend e a anarco-epistemologia, até mesmo Morin e a complexidade, Foucault e Alves e, inclusive, Bachelard e a concepção de obstáculos epistemológicos, buscaram, cada qual mediante a construção de sua própria metodologia e, muitas vezes, em diálogo com o pensamento dos demais, fazer progresso no campo da ciência porem nunca houve consenso, pois todos tinham pensares diferentes, um método e diferente.

 

O próprio contexto científico é variável e, sem dúvida, pode receber interferência do ambiente tanto local quanto global. Tais interferências, quando negativas, são responsáveis por estagnar o processo de geração de novos conhecimentos científicos, impedindo a sua evolução. Nesse campo de estudo das barreiras e dos obstáculos ao pensamento e ao conhecimento científico, Bacon e Bachelard destacam-se pela valorização dada a tal problemática e pelas contribuições advindas de sua abordagem.

 

  1. Os ídolos: Obstáculos à ciência segundo Francis Bacon

Bacon divide o Novum Organumem duas partes: as “Antecipações da mente” e a “Interpretação da natureza”. A primeira serve de preparo para a segunda, visto que ela, é o preparo para a aplicação do método indutivo que é apresentado na segunda parte.

A primeira parte sugere uma limpeza na mente, após mostrar as causas dos erros cometidos pelos que trilharam nos caminhos das ciências.

Ainda no prefácio do Novum Organum, Bacon mostra que o conhecimento humano jamais pode se distanciar da natureza. Sem ela toda ciência e toda filosofia se tornaria vazia, pois a natureza é o que serve de base para qualquer conhecimento, isto é, para Bacon, a natureza é a condição de possibilidade para o conhecimento. “Todos aqueles conhecimentos que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o grande conhecimento, por vezo professoral, por convicção ou por ostentação, infligiram grande dano tanto à filosofia quanto às ciências, pois fazendo valer apenas a sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações”. (BACON, 1979.p.27).

 

As filosofias até então não caminharam por caminhos claros segundo Bacon, pois não trouxera nada de benéfico ao homem. Logo, Bacon deseja saber as causas desses erros, e para ele atribue os ídolos ou fantasmas do intelecto. No aforismo XXXVIII, ele define o que são exactamente esses ídolos: “Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.”(BACON, 199, p.39).

 

No aforismo XXXIX, ele denomina os quatro tipos de ídolos, que são respectivamente os ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do fofo e ídolos do teatro. “Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é como um espelho que reflecte desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.”(BACON, 1979, XLI, p. 40).

 

Para Bacon o intelecto humano tende ao abstracto, “facilmente põe ordem e regularidades nas coisas que de facto se encontram”, e sempre aceita algo que agrada, colocando tudo sobre seu apoio e acordo. Deixa-se sempre abalar com coisas que surpreendem a mente e estimulam a imaginação, sempre é influenciado pelos afectos e ainda, recebem total persuasão dos sentidos, que segundo o filósofo inglês, são incompetentes e escuros. Essas características dão sustentáculo deste  ídolo. “Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões.”(BACON, 1979, LII, p.44).

 

Em outras palavras, o Ídolo da tribo consiste em tomar o conhecimento como verdadeiro de modo total quando dados pelos sentidos, e ainda reduzir sempre a complexidade das coisas ao mais simples, levando em conta só o que lhes convém, abrindo espaço para as superstições. Mas ainda há outra forma de empecilho destacado pelo filósofo inglês: o Ídolo da caverna. E assim Bacon insiste: “Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois cada um além das aberrações próprias da natureza humana em geral tem uma caverna ou uma cova que interpreta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura de livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo (...) têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo; e também na educação, no hábito ou em eventos fortuitos.”(BACON, 1979, XLII e LIII, p.40 e 45).

 

Estes ídolos, os da caverna, consistem no erro que se deriva de cada indivíduo. Este vê as coisas a seu modo, pela sua “caverna interior”, é o que diz Bacon. Leva o homem a interpretar a ciência e as coisas sobre aquilo que ele já conhece, passando a julgar tudo por essa óptica. O homem sempre tende a se apegar as certas verdades por julgar ser seu descobridor, ou porque quase sempre se dedicam com muito empenho e acabam por se familiarizar com elas. E por se referir também à educação, Bacon afirma no aforismo LVI que: “é desse modo que se estabelecem as preferências pela Antiguidade ou pelas coisas novas”. (BACON, 1979).

 

Já o ídolo do foro consiste no erro da linguagem, nas palavras que podem ser usadas em diferentes sentidos ou pode ocorrer uma confusão no discurso entre afirmação e entendimento. E Bacon destaca: “Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do género humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre homens. Com efeito, os homens se associam ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. (...) os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto das palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e reflecte suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofísticas e inactivas.”(BACON, 1979, XLII e LIX, p. 41e 46).

 

Bacon ainda mostra no aforismo LX que este tipo de ídolos se dividem em duas formas: as de nomes de coisas que não existem, isto é, nomes que se relacionam com coisas supostas pela imaginação, e coisas que existem, “mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas de forma temerária e inadequada”. (BACON, 1979).

Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adoptadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. (...) não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na sua universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. (BACON, 1979,XLIV, p.41).

 

Ainda nos aforismos LXI e LXII, Bacon ressalta:“(...) os ídolos do teatro não são inatos nem se insinuam às ocultas no intelecto, mas foram abertamente incutidos e recebidos por meio de fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração. (...) Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos e podem ser, e certamente serão, ainda em muito maior número.” (BACON, 1979, LXI e LXII, p. 48).

 

Em outras palavras, o ídolo do teatro possui o erro nos sistemas filosóficos e em

demonstrações falsas; acreditar em invenções e não no que realmente a coisa designa.

 

 

  1. Os obstáculos epistemológicos segundo Gaston Bachelard

Segundo Bachelard, o problema do conhecimento científico está vinculado a obstáculos. Esses obstáculos são internos e estão acto de conhecer. Devem ser estudados na História das ciências. São muitos os obstáculos, e é preciso destruí-los, pois remete a conhecimentos mal feitos. Será necessária uma psicanálise do conhecimento, visto que são subjectivos e internos a cada indivíduo, pois o homem não pode de um momento a outro se tornar uma tabula rasa.

Na obra A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento objectivo, o autor afirma de maneira mais precisa que “detectar os obstáculos epistemológicos é um passo para fundamentar os rudimentos da psicanálise da razão”. Esses obstáculos são as barreiras que impedem o conhecimento e o progresso científico. Será preciso ir contra as experiências primeiras, largar-se do imediatismo.

 

Essa ideia leva a Bachelard a afirmar o primeiro obstáculo, a saber, a experiência primeira.

Esta, confunde o espírito científico, visto que se relaciona com hábitos e com a evidência das experiências que entram no espírito. A experiência primeira sempre leva ao erro, isto é, é sempre errónea. Mas não se deve tomar o erro como algo negativo, a filosofia bachelardiana trás esse novo sentido à questão do erro, tomando-o como algo positivo, pois ele, é a possibilidade para que o indivíduo reconheça suas limitações.

“É preciso trabalhar contra experiência adquirida sem crítica, a través das observações pessoais, que são lições de um dado, claro, limpo, seguro, constante, sempre oferecendo-se a um espírito aberto.”(BARBOSA, 1996, p.96).

 

Desta forma Bachelard coloca o senso comum ou a primeira experiencia como um grande obstáculo a ser ultrapassado, por que o conhecimento científico não é obvio, mas construído, inventado.

A objectividade do conhecimento só é possível quando o cientista se afasta do imediato.

 

Vale ressaltar, que Bachelard não está tratando de obstáculos externos, como por exemplo, a complexidade dos fenómenos, ou dos sentidos que às vezes tendem a nos enganar, mas como já foi dito da internalidade do pesquisador e suas “cavernas”. Na perspectiva do senso comum, é que se deve aplicar a psicanálise do conhecimento, pois só se pode ter uma coerência na via empírica pelo caminho das matemáticas.

 

O segundo obstáculo que Bachelard se refere ainda na obra acima citada, é o conhecimento generalizado, isto é o conhecimento geral, que se manifestou durante a História das ciências até Bacon. Causas de atrasos ao progresso das ciências. Para Bachelard podem ocorrer conhecimentos que são derivados de pensamentos de outros pensamentos e, visto que às vezes alguns pensamentos estão baseados em leis como: “todos os corpos caem”, além de ficarem presos a essas leis acabam por bloquear novas ideias. Para ele, “É necessário estudar as condições de aplicação destas leis e, sobretudo incorporar as condições de aplicação de um conceito. Assim, observa-se o carácter dominante do novo racionalismo, que corresponde a uma sólida união entre a experiência e a razão.

 

O terceiro obstáculo é o conhecimentos unitário e pragmático é outro obstáculo pois segundo Bachelard a unidade é um princípio sempre desejado e alcançado sem esforços.

As diferentes actividades naturais tornam-se manifestações de uma única Natureza. Não é aceitável que a experiência seja compartimentada. O próprio autor se manifesta declarando que “o que é verdadeiro para o grande deve ser verdadeiro para o pequeno, e vice-versa. À mínima dualidade, desconfia-se de erro. Essa necessidade de unidade traz uma multidão de falsos problemas” (BACHELARD, 1996, p.107).

Muitas generalizações exageradas provêm de uma indução pragmática ou utilitária. A partir de um fato verificado pode-se chegar a uma extensão satisfatória, mas o impulso utilitário o levará, quase que impreterivelmente, longe demais. Bachelard deixa evidente que todo pragmatismo, pelo fato de ser um pensamento mutilado, acaba se tornando exagerado e que “o homem não sabe limitar o útil. O útil, por sua valorização, se capitaliza sem medida. Eis um exemplo em que a indução utilitária age de modo infeliz” (BACHELARD, 1996, p. 114).

 

Um quarto obstáculo que Bachelard coloca em sua obra, é o substancialismo.

Este põe aos objectos qualidades distintas, superficiais, manifestas e ocultas; é a tendência que o ser humano tem em reunir num único objecto elementos variados e até contraditórios. É a busca de uma explicação profunda das coisas, querendo sempre se chegar à alma do objecto. Segundo o epistemólogo francês, a ideia de substância é uma sedução humana existente no inconsciente de cada indivíduo. O substancialismo é um obstáculo para a comunidade científica na medida em que embarra a produção de matérias de pesquisas. Mas é necessário pensar os fenómenos na perspectiva de uma substância, pois além de ser praticamente impossível pensar algo sem se remeter a uma categoria substancial, a ideia de substância é uma ideia tão clara, tão simples, tão pouco discutida, que deve repousar sobre uma experiência muito mais íntima que qualquer outra.

 

A busca da verdade objectiva se dá quando o homem passa a conhecer todos os obstáculos e factores que impedem ou que impediram o conhecimento científico, portanto é necessário conhecer esses obstáculos, se a proposta é um novo espírito, que inventa e cria a realidade. A ideia de uma cultura científica surge como uma espécie de solução para garantir a objectividade do conhecimento epistemológico, onde uma linguagem científica é compartilhada por todos, deixando de ser a própria linguagem um obstáculo.

 

A linguagem se apresenta com um obstáculo verbal, que consiste numa explicação falseada, junto a palavras explicativas. É a tentativa de desenvolver o pensamento após a uma análise de um conceito, em vez de inseri-lo numa síntese racional. Igualmente, os hábitos verbais ou verbalismo se tornam obstáculos, pois a ciência evolui e se desenvolve, enquanto que a linguagem acompanha em passos mais lentos o avanço científico de certos conhecimentos conceituais.

Esses conceitos permanecem e, acabam por se tornar inadequados para exprimir os novos conhecimentos, ou passam a exprimi-lo de forma inapropriada.

 

Igualmente, a linguagem do professor em sala de aula, por vez se afasta do nível de seus educandos, no que diz respeito à prática pedagógica, tornando o conhecimento a ser construído embaraçoso e sem sentido. Trata-se de uma linguagem que não se encaixa na realidade presente, da mesma forma como corre nas comunidades científicas.

 

Ainda na perspectiva do filósofo do não, na educação, a noção de obstáculo pedagógico também é desconhecida. “Os professores de ciências, mas do que os outras não compreendem que alguém não compreenda”, e ainda “não levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, de adquirir uma cultura experimental, mas de mudá-la, derrubar os obstáculos já sedimentados”, e/ou o professor em sala de aula por vezes assume o seu papel deturpando, embaraçando, ocultando o conhecimento. É preciso ressaltar que o espírito ao inserir-se na cultura académico-científica, já traz consigo barreiras, dificuldades, bloqueios, preconceitos, etc., que se deve ser considerado obstáculos pedagógicos para a ciência.

 

Talvez a primazia para a desconstrução desses obstáculos se encontre no momento inicial da inserção do espírito na cultura científica. Para Bachelard, “o indivíduo que entra no meio científico, é sempre velho, pois possui a mesma idade dos seus preconceitos”. São crenças, preconceitos, às vezes sociais, às vezes religiosos, às vezes decorrentes de ideias gerais tidas como verdadeiras e cristalizadas.

 

O realismo também é um obstáculo epistemólogo. Para o realista, a substância de um objecto é aceita como um bem pessoal. Bachelard (1996) afirma que todo realista é um avarento e todo avarento é um realista. Este obstáculo acontece quando se propõe a investigação científica dentro do concreto, sem evoluir para o abstracto (BACHELARD, 1996).

 

O obstáculo realista está relacionado com a experiência primeira. A relação com o mundo macroscópico e visual leva o aprendiz a construir um pensamento científico no nível da abstracção mais perto da estabelecida pelo meio científico.

 

Um obstáculo específico, ainda a ser ressaltado, é o animismo, que leva para o campo da biologia humana, em “um verdadeiro fetichismo da vida” (1996, p. 186), fenómenos e objectos materiais e abstractos, atribuindo-lhes propriedades antropomórficas. Analisando como foram tratados na ciência os três reinos da natureza (animal, vegetal e mineral), até o século XVIII, Bachelard afirma que sempre se “deprecia o reino mineral” (1996, p. 187). Em ciência, por analogia e comparação, e em busca da unidade, passa-se de um reino a outro, em funções complexas ou simples. Ele diz que “sem essa referência aos reinos animal e vegetal, os estudiosos teriam a impressão de trabalhar sobre abstracções” (1996, p. 188). E os fenómenos da vida têm privilégio, estando no inconsciente e participando do devir, pelo ato de renovar e renascer – daí a vida ter um carácter universal. “Vida é uma palavra mágica. É uma palavra valorizada. Qualquer outro princípio esmaece quando se pode invocar um princípio vital”. 

 

Portanto “a matéria viva comanda a matéria morta” (1996, p. 191). Assim, cientistas da época, “pela simples dedução de uma afirmativa valorizante” (1966, p. 192), tomados de “uma fantasia animista”, passam a considerar vivos e orgânicos os elementos inorgânicos, a matéria, as substâncias, os minerais, os metais, o fluido eléctrico, o ímã, os processos orgânicos (Bachelard intitula o capítulo IX dessa obra de O mito da digestão e o capítulo X de Libido e conhecimento objectivo, descrevendo esses processos de animismo com muitos detalhes que ele considera pitorescos), sem nenhum “problema científico bem definido” (1996, p. 203). o sob obstáculo do mito da digestão é qualquer evento ou fenómeno que tem a ver com o estômago passa a ter maior valor explicativo enquanto que o sob obstáculo da libido é interpretado a partir da perspectiva do poder e a vontade de dominar os outros seres humanos por parte do pesquisador e que não pode ajudar, mas reflectir sobre suas experiências ou ensaios dá uma explicação coerente para um fenómeno ou um fato. Outra referência deste obstáculo é a referência constante a pensamentos sexuais que estão presentes em todos os espíritos científicos na formação integral para enfrentar novos fatos ou fenómenos.

 

O último obstáculo epistemológico é o conhecimento quantitativo que é aquele que se considera livre de erro, saltando do quantitativo ao objectivo, através de todo este conhecimento tem maior validade e

Bachelard afirma: “A grandeza não é automaticamente objectiva, e basta dar as costas aos objectos usuais para que se admitam as determinações geométricas mais esquisitas, as determinações quantitativas mais fantasiosas” (1996, p.259). Ele chama de “matematismo demasiado vago” ou “matematismo demasiado preciso” a valoração excessiva aos dados quantitativos, o excesso de precisão numérica e de medição, a predição ultra precisa. Além disso, muitos cientistas descrevem mais o seu método de medir que o objecto de sua mensuração (1996, p. 261), pois “o cientista crê no realismo da medida mais que na realidade do objecto” (idem, p. 262). Bachelard comenta autores e fatos da época, relatando noções equivocadas quanto a aparelhos (termómetro, microscópio), escalas, teorias (matematismo newtoniano), imagens, concepções sobre as cores e outros princípios da física. Para ele, continua havendo uma geometrização (nível não-científico) em muitas dessas abordagens. Ele acusa: “Poderíamos citar ao infinito essas saladas geométricas” (1996, p. 285).

RESUMO

Obstáculos epistemológicos mencionados brevemente são factores que dificultam a passagem do espírito pré-científico para o espírito verdadeiramente científico, e superando obstáculos epistemológicos é como o espírito pode evoluir para criar ciência, na qual emana e surgem novos conhecimentos e existentes realidades que, por vezes, não percebemos que estão ali. Diferentemente do conceito clássico a ciência contemporânea avança através das perturbações da descontinuidade, e cresce pela via das revoluções e não com evoluções do conhecimento. Desta maneira, o seu desenvolvimento se dá através de rupturas e não por lentas maturações. Esta ruptura entre conhecimento comum seja ele empírico ou imediato, e o saber científico é o principal motor do progresso do saber no pensamento de Bachelard, que é o único meio de superação dos próprios obstáculos epistemológicos em um ininterrupto processo de rectificação de erros. É de grande relevância apresentar os pontos que se entrecruzam nas filosofias de Bacon e de Bachelard, no que diz respeito aos obstáculos para a ciência. Em Bacon, dos quatros ídolos citados, dois possuem “raízes na natureza humana”, os ídolos da tribo e da caverna. São ídolos internos à mente humana. Vale ressaltar, que essa internalidade, não se trata de um inatismo. Tanto as “noções falsas” em Bacon, quanto os obstáculos epistemológicos em Bachelard, são exteriores aos homens, isto é, estão à volta, no mundo, na cultura, na educação, etc., que penetram no intelecto humano, se solidificando depois como uma barreira para o conhecimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

CHÂTELET, François. História da Filosofia, idéias e doutrinas: O século XX. Zahar Editora. V.8. São Paulo, 1974.

BACHELARD, Gaston. A formação do Espírito Científico. Martins Fontes, São Paulo, 1996.

BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza; Nova Atlantida. In: Col. Os Pensadores. Tradução e notas de José Aluysio de Reis Andrade. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.