Um subtítulo interessante para essa resenha seria: “Um pequeno estudo formalista/estruturalista com uma pitada de crítica genética”.

O atual e constante trabalho com a obra de Mia Couto tem me deixado no receio de em minhas resenhas estar  me detendo sobre os mesmos fatos literários; a questão da poeticidade do texto, da maleabilidade da palavra, da relação do escritor com a realidade histórica e social de Moçambique, etc…  Por isso, visto que considero já ter hoje uma visão mais abrangente sobre a obra de Mia, resolvi falar da obra Venenos de Deus, remédios do Diabo, do ponto de vista da sua estrutura formal, à maneira dos formalistas, tentando enxergar a fórmula residual que orientou Mia na elaboração do seu enredo. Não me deterei em comparações explícitas com as outras obras lidas, mesmo porque, acima de tudo, isso é apenas uma resenha; mas de modo geral, as observações quanto a estrutura pode ser sem generalizações aplicadas as outras obras.

Venenos de Deus, remédios do diabo  é Romance com o número de personagens mais limitados que já li: o médico Sidónio Rosa; o casal dos Sozinhos (Bartolomeu Sozinho e Dona Munda Sozinho); o administrador da vila, Alfredo Suacelência, e sua esposa Dona Esposinha, que de tão acessório, quase nem chega a ser um personagem; e a ausência de Deolinda. O número de personagens é realmente tão limitado que não fosse pela complexa estrutura narrativa espaço temporal, poderíamos mesmo considerar essa obra como uma novela.

Acredito mesmo, que o número reduzido das personagens é proposital, para que melhor pudesse ser trabalhado a questão central do romance: a mentira. As mentiras que contamos para os outros; e principalmente, aquelas que contamos para nós mesmos. Daí a necessidade do reduzido número de personagens com suas vidas duplas e suas histórias que se desdobram para a construção de uma intricada rede de inverdades que se quer esquecer e não-mentiras que contamos para sobreviver.

A narrativa que começa de maneira muito elementar vai seguindo num acentuado crescente de complexidade, num contínuo emaranhamento do fio narrativo, numa desenfreada imbricação das vidas das poucas personagens, que são e que fingem ser, e num movimento constante de auto revelar-se e se obscurecer.

O embate entre realidade e sonho que permeia boa parte da obra de Mia, em Venenos de Deus, remédios do Diabo, ganha um interessante tratamento. De maneira invertida, o que temos na obra não é aquela clássica narrativa em que o personagem após um vivência num mundo de estranhezas e incoerências, se descobre sonhando quando ao fim da narrativa, acorda para realidade; o que o leitor descobrirá ao ler esse Venenos… é que após uma vivência numa terra cheia de aparentes normalidades o personagem ao fim descobre-se vivendo e parte para o sonho.

O foco narrativo de Venenos de Deus, remédios do Diabo, embora de onisciência, focalizando as verdades interiores de todos os personagens, opta por acompanhar primordialmente o “doutor” Sidónio, ou como é chamado pelo habitantes locais, doutoro Sidonho.

É, no entanto, outro aspecto do narrador que chama mais a minha atenção. Há em todo narrador de Mia, seja ele personagem ou observador, um desejo de fazer parte e um sentimento de exclusão da realidade que vive ou observa. Esse sentimento antagônico de desejo de pertença e reconhecimento de alteridade é para mim, reflexo da realidade pessoal de Mia que vivente da realidade moçambicana que transfigura para seus romances, busca a simbiose com o local não deixando de se reconhecer como fruto de uma cultura lusitana, que na cultura retratada é apenas um elemento residual. Em outras palavras, a literatura de Mia começa se revelar para mim, como um desejo pessoal de apropriar-se de uma cultura que não lhe pertence em totalidade, e um anseio de revelar para cada moçambicano a necessidade de apropriação nacional do que já lhe é seu.