Resumo

O presente trabalho tem como objectivo analisar o romance O sétimo juramento, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, destacando alguns pontos importantes em sua obra como o papel da mulher na sociedade moçambicana, a violência, a poligamia, os mitos e tradições que permeiam este romance.

Este texto tem como objectivo reflectir sobre O Sétimo juramento, de Paulina Chiziane, e as configurações estéticas, históricas e sociais ali presentes a partir da polarização ente bem e mal, passado e presente, colonialismo e pós-colonialismo, de modo a buscar respostas a algumas indagações da Moçambique contemporânea. Assim, entre sombras e abismo, segredos e magias, pretendemos considerar o legado histórico-cultural deste país, suas tradições e seu devir.

Palavras-chave: Moçambique; ruptura; Pós-colonialismo.

Paulina Chiziane, moçambicana nascida a 4 de Junho em 1955, em Manjacaze, província de Gaza situada ao sul de Moçambique, foi a “primeira mulher moçambicana a ser autora dum romance”, A própria escritora, entretanto, não gosta de se definir como romancista, preferindo denominar-se como uma contadora de histórias. A autora diz ter-se inspirado naquilo que ouviu, quando criança e adolescente, da boca dos mais velhos, em especial de sua avó, à volta da fogueira.

Paulina Chiziane cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo, anteriormente chamada Lourenço Marques. Nasceu numa família protestante onde se falavam as línguas Chope e Ronga. Aprendeu a língua portuguesa na escola de uma missão católica. Começou os estudos de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane sem, porém, ter concluído o curso.

Participou activamente à cena política de Moçambique como membro da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), na qual militou durante a juventude. A escritora declarou, numa entrevista, ter apreendido a arte da militância na Frelimo. Deixou, todavia, de se envolver na política para se dedicar à escrita e publicação das suas obras. Entre as razões da sua escolha estava a desilusão com as directivas políticas do partido Frelimo pós-independência, sobretudo em termos de políticas filo-ocidentais e ambivalências ideológicas internas do partido, quer pelo que diz respeito às políticas de mono e poligamia, quer pelas posições de economia política marxista-leninista, ou ainda pelo que via como suas hipocrisias em relação à liberdade económica da mulher.

O Sétimo juramento, romance de autoria de Paulina Chiziane (2000), cujo eixo temático gira em torno de um sistema de oposições e dualidades que parodiam algumas das representações inerentes ao colonialismo. Em comum com Ventos do Apocalipse (1991), Balada de amor ao vento (1995) e Niketche (2002), este romance traz à cena o quotidiano feminino, revelando os meandros que determinam a vida da mulher, mesmo numa sociedade urbana em que elas parecem conhecer maneiras diversas de driblar o peso da sua condição subalterna.

Ao contrário dos demais, em O Sétimo juramento todas as personagens femininas residem em zonas urbanas e pertencem a uma burguesia que oscila em torno do poder político-social ao qual a escritora dirige seu olhar aguçado, desmascarando comportamentos e atitudes.

Para além disso, entre encantamentos, maldições, vinganças e uma série de polarizações entre o bem e o mal, Chiziane também revela a dimensão humana de seu povo, entremeada por costumes ancestrais e que, diante do hibridismo resultante da dominação imperialista, faz com que a sociedade conviva com filosofias de vida bem diversas. Reconstruindo esses lugares de medo e de esperança, Paulina nos oferece uma visão própria, com um matiz singular de personagens que vivem num clima marcado pela dimensão mágica e alegórica da feitiçaria.

É a partir do maniqueísmo que opõe claramente o bem ao mal, o passado ao presente, as tradições à modernidade, que a escritora viabiliza o questionamento da História e da própria condição pós-moderna através desse entrelugar proposto pela literatura e os novos sentidos deles resultantes. Por isso, desde o primeiro capítulo, “mulher e homem, forte e fraco, fogo e água, desfilam em círculo como as estações do ano” (CHIZIANE, 2012, p. 13), integrando a natureza como um sistema por onde circulam, individualmente, elementos opositores que, todavia, compõem o todo universal.

Muito embora o romance seja posterior à revolução colonial e à guerrilha civil, que a sucedeu, a guerra é ainda tema recorrente através do qual a escritora volta os olhos ao passado a fim de narrar sua nação, sobressaltando o fato de que, no presente enunciado, a situação pós-colonial “construirá o majestoso palácio imperial com ossadas humanas que andam às toneladas nas matas”. Dessa maneira revela um outro sistema de oposições a ser tematizado no romance, que é o meio urbano em oposição ao rural, bem como assinalando que a guerra do presente é que envolve o “pão e os direitos do homem” (CHIZIANE, 2012, p. 14).

O Sétimo juramento é encenada no romance a partir da trajectória de Davi, um ex-guerrilheiro que, após o êxodo dos antigos colonos e o sistema de benesses oriundo do novo governo, torna-se presidente de uma estatal. Todavia, fazendo valer a premissa de que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o discurso utópico se esvai ao longo da trajectória da personagem, visto que os lucros da empresa tornam-se a forma encontrada para o enriquecimento às custas de desvios de verbas e outras ilicitudes perpetradas contra a empresa e seus operários, o que resulta no atraso do pagamento e na eclosão de greves.

Apesar da tentativa de forjamento do “homem novo” pós-colonial, bem como a “inquisição revolucionária” empregada nesta empreitada (CHIZIANE, 2012, p. 46), o que se lê é a perpetuação dos mesmos elementos coercivos usados pelo colonialismo na manutenção do status quo. Por isso, como enuncia um dos operários grevistas, alguns deles ex-revolucionários (CHIZIANE, 2000, p. 114), “antes a liberdade era boa. Lutar contra o colonialismo e a liberdade valia a pena. Hoje não dá gosto nenhum. É difícil lutar contra o novo patrão, porque é compatriota, irmão” (CHIZIANE, 2012, p. 212).

Ou, como no confronto entre Davi e uma outra grevista:

“És negro – diz a mulher gorda. – Vieste do nosso ventre e amamos-te. Significavas para nós a geração de escravos que se libertou. Eras o nosso orgulho. Com os teus olhos víamos o mundo que nos fora negado ao longo dos séculos. Quando viajavas para o estrangeiro, rezávamos por ti porque eras a nossa presença na história do mundo. Eras a cultura que sempre sonhamos ter, mas que a história nos negou. Abandonaste-nos. És tirano” (CHIZIANE, 2012, p. 70).

Diante da possível perda da posição social e dos privilégios adquiridos, Davi busca auxílio na magia negra através de Lourenço, um amigo do passado que o seduz com uma pretensa retomada da ancestralidade que o leva a comprometer-se com uma série de pactos e juramentos, entre os quais a imolação de seus companheiros, familiares e a violação da própria filha. Tais práticas ajudam-no a aumentar seu poder financeiro e sua capacidade de controle e expansão dos negócios, livrando-o de seus antagonistas, até perder, finalmente, o poder, ser acuado pelo povo, precipitando-se em queda e desgraça.

Clemente, por fim, é o filho que, apesar de vitimado pela desagregação familiar, opta pelo perdão e pela clemência diante dos desmandos do pai, buscando na tradição e na magia branca desarticular a insensatez que resultou na ambição que tragou Davi e, alegoricamente, o corpo da nação. É o jovem, cujas visões e pesadelos foram inicialmente interpretados como problemas mentais, que combate e vence o pai ao fim de uma batalha que conduz Davi à morte, bem como ao colapso das forças que este representa.

Tal se dá após a descoberta de sua ligação com os espíritos ancestrais ngunis que, como representantes das forças do bem, o levam a abandonar a casa paterna a fim de se iniciar nos estudos de magia numa aprendizagem que se dá no fundo do mar (CHIZIANE, 2000, p. 251). Conhecendo, controlando seus poderes e habilitando-se a proteger sua família, o jovem vence, finalmente, o duelo contra as forças do mal.

Morte e destruição são, por sinal, o resultado final dessa narrativa que não nos permite caracterizar plenamente as personagens como heróis ou vilões, visto que estas são resultantes de uma série de conflitos seculares que devem ser considerados. Essa é a razão por que, diante de um adivinho, Davi ouve:

“És a árvore de casca carnuda, tão amarga que ninguém morde. És canhi, fruto doce, perfumado. Bebida espirituosa, afrodisíaca, que faz o homem e a mulher unirem-se no prazer divino. És remédio e feitiço. És a árvores dos antepassados. Reúnes em ti poderes do bem e do mal” (CHIZIANE, 2000, p. 88).

Da lembrança do passado e da revolução surge a convicção de que “naquele tempo tinha o coração do tamanho do povo. Agora a palavra povo é um simples número, sem idade nem sexo (…), apenas estatística” (CHIZIANE, 2000, p. 14).

Contudo, não obstante o aparente desconforto, a lembrança dos antigos dias como guerrilheiro cessa e o passado, aparentemente, deixa de assombrá-lo, fazendo com que, paulatinamente, a personagem encontre justificativas para as incoerências do presente:

“Estes operários rebelaram-se contra a administração colonial. Hoje, rebelam-se contra os libertadores da pátria, ingratidão típica dos filhos de Israel. O povo é vento que corre para qualquer lado (…) Dez anos durou a luta de independência para libertar a terra. Hoje, o país tem sua identidade, liberdade, estatuto. Alguns operários chegam a afirmar que a vida era melhor no tempo dos colonos. Mas a culpa maior cabe a nós, militantes da utopia, que prometemos um mundo pleno de igualdade. De onde fomos buscar semelhante loucura, se a igualdade não existe nem no reino das formigas?” (CHIZIANE, 2012, p. 33-34).

Esta tensão temporal também afecta Vera, que se une a Clemente na anulação aos males provocados por Davi. Por essa razão, a ida inicial a um adivinho, nos arredores da cidade, mas que se mostra incapacitado a ajudá-la, dada a dimensão da magia envolvida, os leva cada vez mais para fora dos limites da cidade, aos recônditos de Moçambique, “aos montes que protegem o amor e castigam o ódio”, dando “de comer a quem tem fome” (CHIZIANE, 2012, p. 221).

Interessante é observar que Davi também empreende semelhante jornada, acompanhado de Lourenço. É no interior do país, num cenário em que “só a guerra governa”, entre “abutres, cães vadios, cadáveres em putrefacção e cápsulas de balas espalhadas pelo chão” (CHIZIANE, 2000, p. 135), que se dá o encontro de Davi com o insólito que a magia negra representa.

Em “Massinga, a terra dos grandes mágicos” (CHIZIANE, 2002, p. 136), em meio à densidão da noite, num percurso em que o tempo mítico funde-se ao histórico (CHIZIANE, 2012, p. 107), Davi contempla a fortuna da família de Lourenço que, todavia, só pode ser vislumbrada durante o dia. À noite, espíritos considerados fracos, escravizados pelos mais fortes, trabalham para que o fausto possa ser contemplado pela manhã, num igual jogo de submissão.

Ali, no campo abandonado pela elite obcecada pelas luzes da cidade (CHIZIANE, 2012, p. 136), reside o espírito de Makhulu Mamba, “personagem das lendas de terror do universo mítico dos tsongas” (CHIZIANE, 2012, p. 139), que, para garantir a fortuna de Lourenço, tomou da família as sete filhas virgens e impôs a rigidez horária. Metáfora do poder ndau que também garantirá a Davi o acúmulo de riquezas e prestígio, Mamba exige-lhe o sétimo juramento, o da feitiçaria, referido como “a escola dos governadores da vida” (CHIZIANE, 2012, p. 167). Este juramento será somado aos seis prestados anteriormente: do baptismo, da bandeira, do matrimónio, da revolução, da nação, da competência e do zelo (CHIZIANE, 2012, p. 152).

Resumindo em O Sétimo juramento, Paulina Chiziane faz um levantamento minucioso de seu país, mostrando-nos elementos antropológicos consistentes ao retratar, pelo insólito, rituais e práticas religiosas animistas, como sacrifícios, imolações, incorporações que nos fazem contemplar aspectos culturais desconhecidos que nos envolvem, uma vez que sua escrita polemiza o status quo ao denunciar algumas das contradições histórico-sociais.

O romance esvazia-se de significados cristalizados, deixando a emoção diante de uma razão desmantelada por fatos que revelam outras linguagens e discursos que, por sua vez, indagam as personagens e o leitor subjetivo. O Sétimo juramento permite o fugaz consolo que nos projeta para um momento improvável e perdido num futuro incerto que pode vir a ser alterado por uma maior percepção do presente. Pode também, em outro nível e servindo como elemento atenuante, expor também o outro e não apenas o eu.

Enfim, ao valer-se da “geografia mágica do país” (CHIZIANE, 2012, p. 146), de suas lendas, mitos e acontecimentos fantásticos, o romance actualiza aspectos etnográficos de Moçambique que actuam como catálises da lógica dos eventos e da dimensão psicológica de Davi, bem como de algumas personagens aparentemente secundárias como Lourenço, o amigo confidente, e a avó que, como representante de um saber ancestral, contribui positivamente para o desatamento destes vários nós.

Porém, para além das referências estritas a Moçambique, O Sétimo juramento pode ser lido também como rasura dos sinais de reconhecimento nacional e de um universo em que o poder gera um sistema de benesses cujos beneficiários têm que pagar um preço, pois “toda a realização humana exige suor e sacrifício. Toda a fortuna vem das mãos sujas. (…) Viver à larga sem o menor esforço é conversa fiada, porque tudo na vida tem o seu preço” (CHIZIANE, 2012, p. 150).

Em suma, Paulina Chiziane une sua letra à de outros escritores africanos ao escrever sobre a condição humana a partir da perspectiva de seu país e de seu continente. Ao interrogar a História e a própria condição pós-colonial, ela rejeita o projecto de uma burguesia nacional pós-colonial.

Bibiografia

CHIZIANE, Paulina. O sétimo juramentoo. 5. ed. Maputo: Ndjira, 2012.