Por: Daniel Alexandre Ngovene, Eduardo Castigo Tovele e Lourenço José Nhaca

Saberes locais e intersubjectivaçao

 



1.1.Saberes locais nas academias.

Segundo Castiano (2013:3) a filosofia é a fundamentação das condições humanas, ela tem a tarefa de legitimar a própria existência do homem, socorrendo-se da história, cada sociedade tem sua forma de interpretar os fenômenos, isto é, não se pode universalizar a interpretação dos fenómenos da existência, Castiano lança uma crítica à modernidade por ter ignorado estes aspectos nas suas abordagens científicas.

…cria o epistemicídio de outras regiões do mundo diferentes da Europa” (CASTIANO, 2013: 46).

Legitimar o saber científico como único que pode ser considerado conhecimento verdadeiro, porque obedece os critérios da experimentação, estaria se a negar o direito de outros povos que ainda não tem o domínio da ciência de interpretar ou produzir um conhecimento.

Ora, em cada sociedade existem indivíduos que parte do seu local/endógeno, para explicar os fenómenos que ocorrem dentro ou fora da sua sociedade, sem o domínio da ciência. Portanto, esta forma de pensar endógena é considerada tradicional por filósofos profissionais, baseando-se nos ideais da modernidade.

Os filósofos profissionais herdaram o espírito da modernidade, uma vez que consideram a filosofia ensinada nas escolas, universidades etc., como sendo a digna de ser considerada filosofia profissional, por sua vez, invalida outra filosofia que não é ensinada nas escolas, consideram-na saber tradicional. Portanto, há uma necessidade de despertar o interesse pelo saber locais/endógeno, para que este saber possa se enquadrar nas escolas, universidades, etc.

A Comunidade científica deve integrar os saberes locais/endógena no currículo do ensino, ao se enquadrar os saberes locais/endógeno no contexto do ensino e da formação científica, possibilitará um diálogo entre os filósofos profissionais e os não profissionais, porque na maioria das vezes o que distancia ambos são as línguas, não se entendem, sendo que o uso da linguagem é o único meio que torna possível um diálogo entre os homens.

Ora, é necessário que os saberes locais/endógenas sejam validadas e enquadradas na academia, porque se se pautar pelo espírito da modernidade, constata-se que na África não há enquadramento dessas ideias.

Os filósofos não profissionais vêem a realidade a partir de um contexto diferente dos filósofos profissionais, isto é, o que pode ser considerado normal pelos filósofos profissionais pode vir ser considerado anormal nas pelos filósofos não profissionais. Portanto, para que não se caia no grande erro que a modernidade cometeu sobre os ideias do positivismo é necessário

… possibilidade de uma prática de intersubjectividade, para um diálogo conceptual entre a filosofia profissional e o saber filosófico dos sages locais” (CASTIANO, 2013: 24).

No entanto, em outras ocasiões os saberes de índole científico não consegue explicar alguns fenómenos, que ocorrem nas sociedades africanas, pode se citar aqui o caso da feitiçaria, que do ponto de vista científico não é explicável, porém, é um problema que os nativos vivem com ele.

A comunidade científica deve integrar os sabres locais para que possa ajudar na explicação de alguns fenómenos que estão além do estudo da ciência.

1.2. O conceito de Intersubjetivação enquanto reconhecimento dos saberes locais

As ciências, ao longo da história, promoveram sistematicamente o racismo epistémico. Esse que exclui, apaga e invisibiliza as produções filosóficas, culturais, políticas, científicas e jurídicas de povos não europeus, sobretudo os de origem africana, devido ao racismo anti-negro, ampliado com o processo de escravização e colonização do Continente Africano, associados à desumanização e apagamento das memórias e histórias de africanos e seus descendentes na diáspora.

Por esta abordagem, a ideia de intersujectivaczão, têm como compromisso contribuir para romper com o quadro de racismo epistémico no campo das ciências e do conhecimento oriundo do ocidente, que em grande medida não considerou os sujeitos históricos descendentes de africanos e dos povos indígenas como formuladores e intérpretes do conhecimento filosófico.

O conceito de intersubjetivação no contexto africano assume o sentido de diálogo entre filosofias e filósofos africanos e não africanos para pensar a realidade do continente. Castiano parte do contexto pós-descolonização e de construção de novas possibilidades de desenvolvimento e de construção de uma democracia.

No tocante a essa proposta original e que inspira esta reflexão, Castiano apresenta os três momentos que caracterizam a filosofia africana para a qual ele expõe Referenciais.

O primeiro momento diz respeito à objectivação empenhada pelo projecto colonizador, no qual os sujeitos africanos e suas produções culturais e modos de organização social e política são colocados na posição de objectos. Esse momento é caracterizado pela etnofilosofia e pela objectivação.

O segundo momento surge da necessidade de legitimar o discurso do escravo como um discurso abolicionista através da subjectivação, na qual o próprio escravo se torna o sujeito do discurso. Desses referenciais podem ser citados no afrocentrismo e o ubuntismo.

O terceiro momento se caracteriza pela intersubjectivação aqui delineada, cujas principais características são de um diálogo intercultural, de liberdade e de construção de espaços de intersubjectivação para além do campo académico (CASTIANO, 2010).

Além disso, o autor propõe que se deve romper com uma das mais promissoras estratégias de exploração e dominação: se apropriar dos conhecimentos e recursos técnicos, tecnológicos locais, deixando os próprios sujeitos de “fora da festa”, e, por conseguinte, de fora do desenvolvimento.

Essa perspectiva do filósofo está em consonância com o objectivo desta proposta: romper com a vitoriosa estratégia ocidental de apropriação e de excluir os sujeitos históricos da formulação e condução da filosofia, não de um modo particular mas elencando um carácter universalista nesta filosofia. Importante ressaltar que não se confunde intersubjectivação com intersubjectividade.

Aqui, interessa o primeiro termo que diz respeito ao diálogo envolvendo os sujeitos em acção. Trata-se, sobretudo da criação de lugares que possibilitem a intersubjectivação. Esses que se configuram como espaços de interculturalidade e cooperação, para trocas de saberes e conceitos por meio do diálogo entre as filosofias actuais e as do passado, com os próprios sujeitos hermeneutas/cidadãos em geral, pensadores, filósofos e juristas profissionais e não profissionais e os sábios.

No intuito de contribuir com esse processo se propõe a intersubjetivação numa perspectiva afrodiaspórica, fundada na Filosofia Ubuntu, termo de língua Banta formado pelo prefixo ubu, que significa existência em geral, e a raiz ntu, quando a existência assume uma forma concreta.

[…] A partir do Ubuntu, o ser humano afirma sua humanidade por reconhecimento da humanidade de outros, e sobre essas bases estabelece relações humanas. (CASTIANO, 2010, p.156).

Agrega à esta proposta compreender que todo esse processo que precisa ser rompido no campo das ciências filosóficas se deve também ao fato de que a centralidade da categoria raça tem sido sistematicamente negada. O que se apresenta como uma contradição, uma vez que todas as ciências do passado e do presente por meio do racismo solidificaram o terreno para que fosse possível a discriminação racial epistémica, institucional e estrutural, conforme já dito, que excluiu, criminalizou e subalternizou os sujeitos (africanos e todos aqueles que não são do Ocidente).

Acabar estas considerações implica considerar incitar espaços de diálogos ou de intersubjectivação entre as diversas áreas do conhecimento. Tal possibilidade se apresenta como uma promissora forma de reparação pela desumanização, zoomorfização e subalternização de africanos e seus descendentes promovidos pelas ciências de matriz ocidental.

Ressalta-se que em nenhuma hipótese, significa excluir as contribuições ocidentais, pelo contrário, deve-se estabelecer com elas o diálogo sem hierarquizações. Desse modo, é possível, a partir da categoria intersubjectivação, repensar institutos, áreas e problemas filosóficos e sociais fundamentais e em última instância o reconhecimento dos saberes locais no continente e na diáspora.

2. Critica ao do Neoliberalismo

O autor procura desmistificar os fundamentos da liberdade na época neoliberal, deste modo para o neoliberalismo não é uma nova liberdade, mais sim, é uma forma de os grandes países capitalistas poderem exportar os seus capitais. Nesta perspectiva Castiano considera o neoliberalismo um desses mitos que se instalou no debate público moçambicano devido a sua suposta monstruosidade, e é nesta senda que o autor procura explicar o surgimento do neoliberalismo.

De acordo com José Marti (apud Castiano, 2018:19), este considera que existem dois processos que caracterizam o surgimento do considerado “Mostro” o neoliberalismo. O primeiro foi o aparecimento do homo-economicus, nos finais de século XIX, em que a questão ligada a economia torna-se o ponto fulcral, e o segundo processo que caracteriza o surgimento do neoliberalismo foi o aparecimento do Big Brother que consistia na mundialização das redes sociais através da navegação Web, com este processo surgem novos espaços públicos, a reconfiguração assim como o aparecimento de utopias.

No entanto estes dois processos, de aparecimento dos homo-economicus e o Big Brother tiveram o que o autor chamou de subjectivação, ou seja, o desaparecimento contínuo do sujeito histórico-revolucionário do engajamento social. Todavia a radicalização do conceito geral liberdade numa liberdade específica económica pelo neoliberalismo que decorre em duas linhas segundo Castiano (2018:20), primeiro por via da individualização do sujeito da liberdade, ao cidadão individual não se deve tocar por estar investido de mais direitos que deveres perante a sociedade.

O neoliberalismo para Castiano põe o individuo como exclusivo portador da liberdade. A segunda perspectiva da radicalização reside no facto de os clássicos do neoliberalismo, eventualmente mais no caso de Friedman do que Hayek, terem fundamentado quase com um fundamentalismo político, a liberdade individual a partir da liberdade económica e a intocabilidade da propriedade privada. Entretanto, o autor diz que a liberdade económica deixou de ser somente a liberdade fundamental e o alicerce de outros tipos de liberdades. Para a sua defesa passar a ser quase a única razão de ser Estado moderno.

Em virtude dos factos mencionados pôde perceber que, o neoliberalismo surge num contexto em que a questão de liberdade era o ponto de reflexão, uma vez que a economia de um determinado Estado tinha que intervir, já com esse processo de neoliberalismo o Estado passa a ter pouca interferências nos assuntos referentes a economia, ou seja a economia tinha que ser liberalizada e que o Estado devia somente olhar as questões sociais.

E o neoliberalismo enquanto teoria substitui a teoria crítica, porque de certa forma poderia tornar-se negativa, os Estados africanos passaram a ser avaliados por critérios do neoliberalismo na sua versão africana, quer dizer a forma como é encarada ou olhada a economia e finanças e como também tratam os cidadãos de classe média, de empresários passou a ser a forma como são tomadas as decisões políticas dos Estados africanos.

CONCLUSÃO

O erro da modernidade foi de universalizar o conhecimento científico, isto é, todo aquele saber que não seguisse os critérios da experimentação, foi considerado como saber tradicional. Estas conclusões por parte foram bem recebidas por aqueles que fazem parte do mundo onde predomina a ciência, porém, entra em choque nas sociedades onde não há prática da experimentação, apenas baseia-se nos saberes locais/endógenos.

Ora, convida-se os filósofos profissionais a entrar em diálogo com os seus colegas não profissionais de modo a encontrar soluções para fundamentar a sua própria existência. A intersubjectivação por sua vez é o caminho que possibilitará e criará condições para a realização e ou concretização desse diálogo epistémico entre o os filósofos profissionais e os não profissionais ou ainda entre o diálogo entre filosofias e filósofos africanos e não africanos para pensar a realidade do continente.

Propor a intersubjectivação poderá trazer os sujeitos históricos ao quadro epistémico, estes que já compreendem desde sempre o mundo para além das determinações subalternizantes e colonizadoras. Castiano, procura revelar a verdadeira natureza dos fundamentos da liberdade na época neoliberal. Para tal construção de desmistificação, Castiano faz um debate entre as ideias dos filósofos que abordaram as questões ligadas a liberdade assim como o neoliberalismo, como espelho para interpretação e percepção da realidade moçambicano.


Veja também:

Jogos de linguagem enquanto pressuposto para a legitimação dos saberes locais

Etnociência enquanto pressuposto para o conhecimento universal na prespectiva castiniana

O estatuto epistemológico e axiológico das línguas maternas

OS SABERES LOCAIS NA ACADEMIA SUGUNDO CASTIANO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTIANO, José Paulino. (2010). Referenciais da Filosofia Africana: em busca da intersubjectivação. Maputo; Ndjira.

______.(2013). Saberes locais nas academia: condições e possibilidades da sua legitimação. Maputo; escolar.

______. (2018). A liberdade do Neoliberalismo: leituras Críticas, Maputo, Educar.

José Castiano nasce na Beira ( Moçambique) em 1962. Docente de filosofia nos cursos de licenciatura e mestrado na Universidade Pedagógica (UP). Autor de vários livros, entre eles: Referenciais da Filosofia africana: em busca da intersubjectivação (2010) e Filosofia africana: da sagacidade a intersubjectivação ( 2013).