Por: Marchal
O problema no sentido generalizadamente nos seus efeitos, mas porventura nem sempre consciencializado na sua radicação - resulta da óbvia circunstância de que para ser ensinável, a filosofia tem de começar por existir, não um existir em alhures, mas em qualquer e em cada um dos níveis de comunicação considerados. É difícil (impossível) ensinar/transmitir algo que nós próprios não sabemos bem o que é, que problemática expressa, para que diálogo com o real pode ser convocado, etc.
E não se trata de existir em abstracções em depósito, numa vaga memória de que há livros onde a filosofia está (toda ou quase), de que há uma tradição que nos assegura que ela existe e possui um historial respeitável, de que há pessoas (regra geral outros) que se lhe dedicam ou a encarnam com seus cultores oficializados. Por aqui passa seguramente a raiz de muita incomodidade/insegurança subjectiva no ensino da filosofia. (MARNOTO 1990:69).
Em jogo começa por estar a relação do próprio ensinante com a filosofia: nós começamos, em geral, por nos queixar dos outros que não aprendem, que não se interessam, que não sabem. MOURA citado por MARNOTO (1990:69).
Se, porém, o ensino/comunicação é essencial ao filosofar, a filosofia não se reduz/reconduz ao magistério há aqui que quebrar o círculo da autofagia filosófica: ensinar Platão, Popper ou Marx apenas para que se repita Platão, Popper ou Marx. O pensar (e obviamente o pensar filosófico) reflecte, acompanha, interroga, perspectiva um real em que nós próprios começamos por nos encontrar praticamente intervenientes.
As tarefas filosóficas da fundamentação e da crítica, a chamada e nossa descoberta conjunta do real de diferentes interlocutores, dão-se neste horizonte. Todas estas articulações constitutivas têm de ser reconstruídas, mediadas, de modo apropriado a cada relação comunicativa. É este texto "polifónico" que tem de ser trazido à presença na aula, na palestra, no livro.
Sustenta MOURA citado por MARNOTO (1990:69) que:
Ensinar filosofia é dar a "ver" e a pensar unitariamente esta "polifonia”, este discurso/dialéctica multivocal que os intervenientes são chamados, não apenas a fruir este em articulação com este problema que nos acompanha a todos nós enquanto ensinantes de filosofia assoma igualmente o de uma desejada clarificação da função social da filosofia eticamente, mas também a penetrar e reelaborar teórica e praticamente.
Um outro problema reportado no contexto da filosofia e o seu ensino é a constante questão que sempre somos colocados, nos como ensinantes da filosofia "para que serve a filosofia". Daqui provém em geral uma sensação de desconforto ou de má consciência para os filósofos, porque ninguém pergunta mesmo quanto saiba para que servem equações do 2º 3º grau.
Estes são, sem dúvida, elementos relevantes do horizonte concreto em que o actual questionamento da filosofia se dá. De uma forma não mecanicamente simplista, de uma forma nem sempre assumidamente consciente e generalizada, há no entanto efectivos interesses antagónicos que nesta matéria se confrontam. (MARNOTO1990:70)
A historicidade na filosofia não é apenas um problema de recolecção memorial de um passado ou de uma tradição. A historicidade da filosofia é um problema realmente vivido. Estamos à nossa maneira e com as nossas limitações, a modelar, a construir, a determinar concretamente essa historicidade. Não estamos apenas a contemplar uma história que outros fizeram, estamos também a fazer história.
As breves considerações que se lhes irão seguindo visam apenas indicar algumas pistas que num aprofundamento da questão poderão ser prosseguidas. Onde? a quem? e como? ensinar filosofia. Qual o lugar da filosofia no sistema educação global? Penso que a filosofia, apesar da especificidade e tecnicidade dos seus procederes, não deve permanecer confinada curricularmente à Universidade, deve continuar no ensino secundário; pode e deve alargar-se a outras instituições e programas culturais. (Ibdem)
Outro problema actualmente em curso de debate é o que se reporta à formação de docentes, particularmente para o ensino secundário. Penso que a docência da Filosofia, em termos institucionais, supõe uma licenciatura em Filosofia. A formação científica básica tem que ser valorizada e aprofundada; e não, de modo algum abreviada. Há que exigir ao docente de filosofia que saiba filosofia e que pense filosoficamente.
Esta experimentação/exercício do pensar envolve processos de maturação que requerem trabalho e tempo; não é uma questão resolúvel simplesmente mediante acelerações do ritmo de aprendizagem ou rentabilização dos empacotamentos de informações.
Na formação de professores há que articular indispensavelmente, após uma formação básica de especialidade neste caso, Filosofia; o trabalho efectivo e concreto nas Escolas e não só um estágio, uma visita ou uma observação esporádicos do que por lá se passa; a experiência directa da escola e decisiva, a Universidade que não deve estar alheada deste processo e tem de se preparar para nele participar em termos de pós-graduação, uma componente psico-pedagógica adaptada e articulada com as situações e problemas que o docente no quotidiano é chamado a resolver.
Formar professores é necessário e é possível. Acrescentar algumas cadeiras a um currículo e excursionar por alguma escola em observação de aulas poderá ser um enriquecimento de experiências dos alunos, mas não é seguramente formação de professores. (MARNOTO1990:72)
Questão premente é também na actualidade a de uma diversificação das saídas profissionais para licenciados em Filosofia. Trata-se de um problema cuja solução supõe um reforço geral do trabalho interdisciplinar e um reequacionamento do lugar da filosofia no campo mais vasto da cultura e da produção cultural. Se o ensino da filosofia é determinante de uma socialização do filosofar, é todavia mister não reduzir a filosofia ao ensino da filosofia em sentido restrito.
A voz da filosofia interpelando o real e ajudando a pensá-lo (mediatamente: a transformá-lo) tem, pois, de se fazer ouvir, e que ser estimulada também.