Por: Daniel Ngovene, Eduardo Tovele e Raquel Buque

O papel da padronização da ortografia das línguas maternas (locais)


No processo de formação ou estabelecimento do reconhecimento do papel das línguas maternas (locais) na aquisição de conhecimentos locais, que alguns como Boaventura de Sousa Santos (2009:44) chama de conhecimento Pós-abissal ou do outro lado do não ser. Existem discursos que afirmam que o reconhecimento surgirá ou virá se os próprios africanos (moçambicanos) combaterem os ideais de sua inferioridade diante dos ocidentais (colonizador) (cf. Ngunga e Faquir, 2011: 264-269).

O ser civilizado que muitos afirmam é na verdade, a negação da possibilidade de sua língua, elemento fundamental para a cultura e para o ser social, contribuir para o enquadramento do moçambicano no processo de busca e produção do conhecimento. Segundo Ngunga e Faquir (2011), a civilização é a apropriação dos africanos (moçambicanos) das línguas estrangeiras (ocidentais) assim como sua forma de falar e de ser.

O colonizado sempre sonhou em instalar-se no lugar do colono, não em se tornar o colono, mas em substituir o colono” (FANON, 1965:39).


Essa instalação a nível linguístico, isto é, das línguas maternas senão locais é tão perigosa, pois irá influenciar negativamente na destruição dos outros campos que ela forma (cultura, comunidade, etc.). Por isso, é que para Ngunga e Faquir (2011:261) para que isso não aconteça, autores como Kwesi Prah, Laurinda Moisés, Elsa Cande e Jorgete Jesus optam pelo empoderamento linguístico africano, visto como crucial no desenvolvimento enquanto instrumentos de acesso aos saberes locais (nacionais), a disposição de mecanismos de acesso poderá contribuir ainda na participação activa deste africano na sociedade.

O empoderamento acima mencionado consistirá no agrupamento harmónico da ortografia das línguas africanas. Esta harmonia busca no fundo, que as línguas tenham formas padronizadas para que sirvam de instrumento de educação, está que será a forma de emancipação dos povos africanos.

As línguas maternas como qualquer outra que queira intervir de forma activa, criando a intersubjectivação, deve possuir elementos, um léxico, uma gramática, isto é, elementos básicos que as línguas internacionais possuem ou têm, estes elementos serão importantes para a educação ou reeducação dos sujeitos africanos. A estes elementos básicos chamamos padronização, que consiste na criação ou identificação de estruturas fenológicas, sintácticas, morfológicas e ainda de escrita única. A escrita padronizada das línguas maternas é necessária, pois garante que todos partilhem da mesma forma de interacção entre os sujeitos.

A padronização intra-linguística é a forma mais segura de garantir que haverá uma comunicação entre o escritor e o leitor podendo estes através da grafia padronizada, dispor de um meio fundamental de descodificação de margens escritas”. (idem,p.300)


A leitura alimenta a alma e o espírito é por via desta que o leitor entra em diálogo com o escritor e, nesse diálogo, o leitor mais aprende a forma de escrever, de transmitir e /ou produzir conhecimento. A escrita é então importante porque sem ela não haveria possibilidades de haver leitores, não havendo assim a descodificação das suas margens ou obscuridades. Como dissemos antes a educação é um instrumento de emancipação e, sendo assim,

uma ortografia padronizada é importante para o uso da língua na produção de material didáctico e pedagógico, na sala de aulas (na escolarização e na alfabetização dos adultos) e nos meios de comunicação social sobretudo na impressa escrita. ” (idem, p.301)


A padronização da ortografia constitui um elemento importante porque contribui para o ensino e abre as mentes, esta abertura garante a intersujectivação dos indivíduos e a intervenção deste no meio social. Estas descrições são no fundo conhecimentos, produtos de uma educação com bases escritas. Não obstante, não estamos a negar a oralidade, mas ela é bem limitada visto que ela abrange um grupo muito restrito e suas afirmações não têm longevidade, não salvaguarda a memória e o património cultural.

Um dos teóricos deste ponto é o filósofo Paulin Hountondji, que dizia de forma clara que a emancipação do africano deve passar os limites da oralidade, ela, deve consistir na produção escrita do conhecimento, pois segundo Ngunga e Faquir (ibidem), a escrita é definida e mais clara (sólida e estrutural) ao passo que a oralidade é líquida, não é definida, por vezes obscura.

Ngunga e Faquir (ibidem), sustentam que a harmonia da qual Kwesi Prah fala poderá ser dada a partir desta padronização. Pois, a padronização de variantes linguísticas possibilitará a identificação das suas semelhanças e diferenças. A padronização da escrita materna ou se preferir da ortografia vai garantir a produção e processamento de informações que devem ser partilhadas pelos africanos.

O estatuto epistemológico condiciona o axiológico das nossas línguas (maternas) pois o reconhecimento e a apropriação da escrita como “parte do nosso distintivo nacional, da nossa marca cultural, da nossa moçambicanidade” (idem, p.302), vão fazer com que reflictamos colectiva e nacionalmente sobre o nosso ser social. Esta reflexão vai contribuir para a valorização da língua na difusão e produção do conhecimento.

O enquadramento das línguas locais nas academias.


Segundo Castiano (2013:3) a filosofia é a fundamentação das condições humanas, é a possibilidade da existência, ela tem a tarefa de legitimar a própria existência do homem, socorrendo-se da história, é de salientar que cada sociedade tem sua forma de interpretar os fenómenos que coincide com a existência humana na terra. Não se pode universalizar a interpretação dos fenómenos da existência, lança uma crítica à modernidade por ter ignorado estes aspectos nas suas abordagens científicas.

Legitimar o saber científico como único que pode ser considerado conhecimento verdadeiro, porque obedece os critérios da lógica, estaria se a negar o direito de outros povos que ainda não tem o domínio da ciência de interpretar ou produzir um conhecimento. Ora, em cada sociedade existem indivíduos que parte do seu local (endógeno), para explicar os fenómenos que ocorrem dentro ou fora da sua sociedade sem o domínio da ciência. Portanto, esta forma de pensar endógena é considerada tradicional por filósofos profissionais, baseando-se nos ideais da modernidade que

…cria o epistemicídio de outras regiões do mundo diferentes da Europa” (CASTIANO, 2013: 46).


Os filósofos profissionais herdaram o espírito da modernidade, porque consideram a filosofia ensinada nas escolas, universidades etc, como sendo a digna de ser considerada filosofia profissional, por sua vez, invalida outra filosofia que não é ensinada nas escolas, consideram-na saber tradicional. Portanto, há uma necessidade de despertar o interesse pelas línguas locais ou maternas, para que este saber local (tradicional) possa se enquadrar nas escolas, universidades, etc.

A Comunidade científica deve integrar as línguas locais no currículo do ensino, ao se enquadrar as línguas locais no contexto do ensino e da formação científica, possibilitará um diálogo entre os filósofos profissionais e os não profissionais, porque na maioria das vezes o que distancia ambos são as línguas, não se entendem, sendo que o uso da linguagem é o único meio que torna possível um diálogo entre os homens. Ora, é necessário que estas línguas locais sejam validadas e enquadradas na academia, porque se se pautar pelo espírito da modernidade, constata-se que na África não há enquadramento dessas ideias.

No entanto, em outras ocasiões os saberes de índole científico não consegue explicar alguns fenómenos, que ocorrem nas sociedades africanas, pode se citar aqui o caso da feitiçaria, que do ponto de vista científico não é explicável, porém, é um problema que os nativos vivem com ele. A comunidade científica deve integrar as línguas locais para que possa ajudar na explicação de alguns fenómenos que estão além do estudo da ciência.

Os falantes das línguas locais vêem a realidade a partir de um contexto diferente da linguagem usada pela comunidade científica, isto é, o que pode ser considerado normal na linguagem da academia pode vir ser considerado anormal nas línguas locais. Portanto, para que não se caia no grande erro que a modernidade cometeu sobre os ideias do positivismo, é necessário que haja

… possibilidade de uma prática de intersubjectividade, para um diálogo conceptual entre a filosofia profissional e o saber filosófico dos sages locais” (CASTIANO, 2013: 24).

 

A pluridimensionalidade linguística e o discurso sobre a Unidade Nacional


Em Moçambique como em outros países africanos, as línguas nacionais são múltiplas e a sobreposição de uma por outras ou de outras por uma, pode causar conflitos étnicos. Mas, a consciência da importância que cada língua nacional tem para o acesso ao conhecimento e para o objectivo comum que é o desenvolvimento epistemológico e axiológica das línguas materna transcende as diferenças linguísticas, pois cada uma tem o seu valor cultural e ético peculiar. Pretende-se passar a ideias de que, Moçambique esta presente em cada língua Nacional seja através de traços lexicais, fonéticos e espirituais.

Ngunga apud Ngunga e Faquir (2011: 303), a adopção da língua portuguesa como língua oficial exclui muitos moçambicanos que não têm acesso a escolarização, pelo facto de ela não ser de domínio de todos, esta exclusão, fez com que muitos moçambicanos ficassem alheios aos problemas e sem possibilidade de participar na resolução e na tomada de decisões.

Na diversidade linguista é possível falar da unidade nacional na medida muitos valores partilhados pelos moçambicanos criam em cada um a vontade de lutar pelo bem comum, que é unir-se para o desenvolvimento. Isto envolve os valores culturais, morais cívicos, religiosos entre outros que transcendem a diversidade linguística. A harmonização e padronização da escrita irá garantir o desenvolvimento de todas línguas nacionais e o ganho será de cada moçambicano. No entanto, podemos alistar alguns avanços e desafios respectivamente:

O ensino bilingue alavancou a produção escrita em quase todas as línguas moçambicanas; Introdução de linguística Bantu no Instituto de Formação de Professores; Introdução do curso de Licenciatura em ensino de língua Bantu na Universidade Eduardo Mondlane.

O desafio de elevar as línguas nacionais ao mesmo nível da língua portuguesa; O desafio de descobrir a ciência em línguas moçambicanas e ensina-las aos moçambicanos em suas línguas e por fim, o desafio de poder ensinar as disciplinas particulares nas línguas moçambicanos.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CASTIANO, José P. (2000). Referências da filosofia: em busca da intersubjectivação. Maputo, Ndjira.

______(2013). Os saberes locais na Academia: condições e possibilidades da sua legitimação. Maputo, Universidade Pedagógica/CEMEC

FANON, Frantz. (1965). Os condenados da terra. Trad. José Lourenço de Melo, Rio de Janeiro, Civilização brasileira.

NGUNGA, Armindo e FAQUIR, Osvaldo, G. (2011). Padronização da ortografia de línguas moçambicanas: relatório do III seminário. Maputo, centro de estudos africanos (CEA) -UEM.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2009). Epistemologias do sul. Coimbra, Almeida