Introdução
No contexto do ordenamento jurídico moçambicano, o reconhecimento e a integração dos costumes representam um elemento crucial na compreensão da complexa tessitura cultural e legal do país. Este trabalho se propõe a analisar o papel do costume, com foco no artigo 4 da Constituição da República de Moçambique (CRM) de 2018, que estabelece o reconhecimento dos diferentes sistemas normativos e de resolução de conflitos presentes na sociedade moçambicana.
Os costumes, enquanto normas de comportamento enraizadas na consciência colectiva do povo, têm desempenhado um papel significativo na história jurídica de Moçambique, desde o período pré-colonial até os dias actuais. No entanto, a colonização portuguesa e o subsequente processo de independência introduziram transformações significativas no tecido social e legal do país, desafiando e reconfigurando as práticas e tradições jurídicas tradicionais.
Neste contexto, este trabalho tem como objectivo geral analisar o papel do costume no ordenamento jurídico moçambicano, com foco específico no artigo 4 da CRM de 2018. Para atingir este objectivo, os seguintes objectivos específicos são delineados:
- Conceptualizar os costumes e as características que os tornam jurídicos;
- Descrever a evolução histórica do costume no ordenamento jurídico moçambicano, desde o período pré-colonial até os dias actuais;
- Analisar o papel do artigo 4 da Constituição de 2018 no reconhecimento e integração dos sistemas normativos e de resolução de conflitos presentes na sociedade moçambicana.
A presente pesquisa será conduzida mediante uma abordagem de pesquisa bibliográfica, com base em fontes primárias e secundárias relevantes para o tema. Serão consultadas obras jurídicas, constituições anteriores de Moçambique, artigos académicos e dissertações relacionadas ao tema em questão.
COSTUME NO ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO, ESTUDO DE CASO DO ARTIGO 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE
- Conceito de costume
Conforme Vinagre (1988, p. 110), os costumes representam as normas de comportamento que surgem de forma natural na consciência colectiva do povo. Essas normas são seguidas de maneira regular e uniforme, com a convicção de que correspondem a uma necessidade jurídica.
Um dos aspectos importantes dos costumes é que “para que tenham significação jurídica, [os costumes] não podem divorciar-se da moral e, como todo elemento da ordem jurídica, têm de estar conforme o direito natural” (Vinagre, 1988, p. 110).
Segundo Ráo (1976, p. 218), um costume torna-se jurídico quando é reconhecido e respeitado pela opinião necessitatis, reflectindo a convicção arraigada de que ali está presente uma norma de conduta. A opinião juris et necessitatis, ou simplesmente opinio necessitatis, é o que transforma um simples hábito em costume jurídico.
- O Costume no ordenamento jurídico moçambicano
No período pré-colonial de Moçambique, os conflitos sociais eram resolvidos pelos chefes e régulos locais. A chegada dos portugueses em 1505 marcou o início da colonização, que impôs seus valores, crenças e normas sobre a população moçambicana (Gabriel, 2014). Durante o período colonial, vigorava o indigenato, uma distinção entre os cidadãos assimilados e os nativos, sendo que a independência só foi alcançada em 1975.
Após a independência, uma das primeiras medidas foi a eliminação do indigenato, embora isso tenha desafiado algumas práticas do direito costumeiro moçambicano, especialmente aquelas relacionadas às mulheres, como o lobolo, a poligamia e os casamentos arranjados. O objectivo era romper com as autoridades tradicionais e suas práticas consideradas retrógradas, como o lobolo, que enfatizava o aspecto material do matrimónio (Maria, 2020, p. 42).
Os valores e ideais europeus persistiram na sociedade moçambicana pós-colonial, levando ao combate dos costumes tradicionais africanos, considerados “injustos e propagadores das desigualdades combatidas” (Maria, 2020, p. 42). Isso resultou na instauração de novos costumes, como a liberdade de expressão das mulheres, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e a monogamia, embora esse processo tenha sido gradual.
Uma mudança significativa ocorreu na primeira revisão da Constituição de Moçambique (CRM) em 1990, que promoveu a emancipação das mulheres e sua participação nas esferas política, social e econômica do país (corpo do artigo 57 da CRM de 1990). Também, a CRM de 1990 garantia a livre expressão das tradições e valores da sociedade moçambicana, promovendo “o desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das tradições e valores da sociedade moçambicana” (n.º 1 do artigo 53 da CRM de 1990).
Em 2004, outra revisão constitucional ocorreu, resultando na inclusão do reconhecimento e valoração da autoridade tradicional legitimada pelo direito consuetudinário. O Estado também definiu o relacionamento da autoridade tradicional com outras instituições e sua participação na vida económica, social e cultural do país, de acordo com a lei (corpo do artigo 118 da CRM de 2004). Porém, o ponto que mais interessa ao presente trabalho é a introdução do reconhecimento de outros sistemas normativos de resolução de conflitos existentes na sociedade moçambicana, conquanto que não contrariem os fundamentos e directrizes da Constituição (artigo 4 da CRM de 2004).
O artigo acima referido institui o pluralismo jurídico no ordenamento jurídico moçambicano, e é mantido na revisão constitucional de 2018. No próximo ponto deste trabalho analisaremos o caso específico desse artigo e suas implicações.
- O Caso do artigo 4 da Constituição de 2018
O artigo 4 da CRM de 2018 institui que “o Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.
O artigo supracitado representa um marco significativo no reconhecimento e na integração dos sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana. Este artigo reflecte a rica diversidade cultural e jurídica do país, evidenciada no ponto 2 deste trabalho. Esse artigo reconhece a existência de diferentes tradições e práticas locais que influenciam o ordenamento jurídico moçambicano, tais como as religiões (corpo do artigo 12 da CRM de 2018), autoridades tradicionais (corpo do artigo 118 da CRM de 2018) e os costumes e tradições (corpo do artigo 115).
Ao reconhecer a validade desses sistemas normativos, o Estado moçambicano demonstra sua abertura à pluralidade e à diversidade cultural, promovendo o respeito às tradições e costumes das comunidades locais. Segundo Marques & Ribeiro (2015, p. 97-98), isso é especialmente relevante em um país como Moçambique, onde a diversidade étnica e cultural é uma característica fundamental da sociedade.
É importante ressaltar que o reconhecimento desses sistemas normativos não significa uma renúncia aos princípios fundamentais do Estado de direito. Lembremos que o artigo 4 estabelece que esses sistemas devem estar em conformidade com os valores e princípios fundamentais da Constituição, garantindo que os direitos e liberdades dos cidadãos sejam protegidos e respeitados em todos os contextos, e colocando a Constituição como a norma principal.
Ao buscar promover uma harmonia entre a preservação das tradições culturais e a necessidade de um sistema jurídico justo e inclusivo reconhecendo e integrando os sistemas normativos locais, o Estado reafirma seu compromisso com a construção de uma sociedade democrática e plural, onde a diversidade é valorizada e os direitos de todos são protegidos.
Conclusão
O presente trabalho buscou analisar o papel do costume no ordenamento jurídico moçambicano, com especial atenção ao artigo 4 da Constituição da República de Moçambique de 2018. Ao longo da pesquisa, foi possível compreender a evolução histórica do costume desde o período pré-colonial até os dias actuais, considerando as influências coloniais e pós-coloniais que moldaram o contexto legal do país.
O reconhecimento e a integração dos sistemas normativos e de resolução de conflitos, conforme estabelecido pelo artigo 4 da Constituição de 2018, representam um marco significativo na construção de um ordenamento jurídico inclusivo e plural em Moçambique. Ao valorizar a diversidade cultural e jurídica do país, essa disposição constitucional promove o respeito às tradições e costumes das comunidades locais, ao mesmo tempo em que reafirma o compromisso do Estado com os princípios fundamentais do Estado de direito.
No entanto, é importante ressaltar que o reconhecimento dos costumes não implica uma renúncia aos direitos e liberdades individuais garantidos pela Constituição. Pelo contrário, os sistemas normativos locais devem estar em conformidade com os valores e princípios fundamentais da Constituição, garantindo a protecção e o respeito aos direitos de todos os cidadãos moçambicanos em qualquer contexto.
Diante disso, concluímos que o reconhecimento do costume como uma fonte legítima de direito no ordenamento jurídico moçambicano reflecte a busca por uma sociedade democrática, inclusiva e respeitadora da diversidade.
Referências bibliográficas
Gabriel, D. (2014). Direitos africanos – Constituição e organização judiciária de Moçambique. ArtCiência, n. 13, pp. 1-12.
Maria, A. C. (2020). Direito consuetudinário e efetivação dos direitos humanos das mulheres na áfrica lusófona: Uma análise à luz do pluralismo jurídico e do neocolonialismo. (Dissertação). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
Marques, H. R., & Ribeiro, L. S. (2015). Direito Consuetudinário como elemento de desenvolvimento local: o caso indígena. Revista Tellus, n. 28, pp. 83-105.
Ráo, V. (1976). O Direito e a vida dos direitos. Volume I. 2ª ed., São Paulo: Editora RT.
Vinagre, M. (1988). Costume: Forma de expressão do direito positivo. Brasília, v. 25, n. 99, pp. 109-126.
Legislação
Lei n.º 1/90, de 2 de Novembro – Constituição da República de Moçambique.
Lei n.º 1/2004, de 22 de Dezembro – Constituição da República de Moçambique.
Lei n.º 1/2018, de 12 de Junho – Lei de Revisão Pontual da Constituição da República de Moçambique.