SECÇÃO I – DESCARTES
- Descartes: sua vida e época
René Descartes nasceu em La Haye en Touraine, França, em 31 de março de 1596, um período caracterizado por significativas turbulências políticas e religiosas em toda a Europa. O final do século XVI foi marcado pelas consequências da Reforma Protestante, que levou a uma série de guerras religiosas, especialmente na França, onde o conflito entre católicos e huguenotes foi particularmente intenso.
A guerra religiosa dentro do país chegou ao fim, e a promulgação do Edito de Nantes permitiu que os reformadores adorassem como desejassem, além de serem reconhecidos como bons membros do Estado. As reformas financeiras de Sully tiveram grande importância, assim como seu incentivo às manufacturas e outras iniciativas patrióticas (Haldane, 1905, p. xxvii).
Essa era também foi definida pela consolidação do poder real sob o rei Henrique IV, que buscou estabilizar a França após décadas de guerra civil.
O panorama científico durante a vida de Descartes estava a passar por uma transformação dramática. O século XVII, muitas vezes referido como a Revolução Científica, viu o surgimento de novas abordagens para entender o mundo natural. Westfall (1980) explica que figuras como Galileu Galilei e Johannes Kepler estavam a desafiar as visões aristotélicas tradicionais que dominaram o pensamento europeu por séculos. O próprio Descartes foi profundamente influenciado pelo ambiente intelectual de seu tempo, que estava cada vez mais a questionar doutrinas estabelecidas e buscando aplicar a razão e a observação para desvendar os mistérios do universo.
Descartes nasceu em uma família abastada com conexões nobres, o que lhe proporcionou acesso a uma boa educação. Em suas palavras, Descartes atesta essa colocação, afirmando o seguinte:
Fui alimentado com as letras desde minha infância, e, por me terem persuadido de que por meio delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, tinha um imenso desejo de aprendê-las. Mas, assim que terminei todo esse ciclo de estudos, no termo do qual se costuma ser acolhido nas fileiras dos doutos, mudei inteiramente de opinião (Descartes, 2001, p. 8).
Descartes foi matriculado no colégio jesuíta de La Flèche. Esse colégio foi fundado em 1604, conforme relata Watson:
Em 1604 os jesuítas fundaram em La Flèche o Collège Royal, que René Descartes frequentou. Também em 1604, o Padre Louis Richeome publicou o grande best-seller O Peregrino de Loreto, que mais tarde pode ter inspirado Descartes a fazer a peregrinação ele mesmo (Watson, 2007, p. 64).
Em La Flèche, Descartes foi exposto à rigorosa filosofia escolástica que dominava a educação na época. Apesar da rigidez intelectual do escolasticismo, que buscava conciliar a teologia cristã com a filosofia de Aristóteles, Haldane (1905) explica que a educação de Descartes em La Flèche desempenhou um papel crucial no desenvolvimento de suas habilidades analíticas. A abordagem metódica dos jesuítas, combinada com sua ênfase em matemática e lógica, mais tarde influenciaria os próprios métodos filosóficos e científicos de Descartes.
O início do século XVII foi um período de estratificação social na França, com uma divisão acentuada entre a nobreza e os plebeus. A criação de Descartes reflectia seu status como cavalheiro, o que não apenas influenciou sua educação, mas também suas interacções sociais. Ele foi ensinado sobre as cortesias e convenções da vida nobre, às quais aderiu ao longo de sua vida. Apesar de sua profunda imersão em actividades intelectuais, conforme atesta Watson (2007), Descartes sempre esteve consciente de sua posição social e das expectativas associadas a ela. Seu estatuto de nobre lhe proporcionou a liberdade de seguir seus interesses sem a pressão imediata de necessidades financeiras, um privilégio que lhe permitiu focar em seus estudos e viagens pela Europa.
Politicamente, Descartes viveu durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), um conflito devastador que envolveu grande parte da Europa. A guerra começou como um conflito religioso dentro do Sacro Império Romano, mas eventualmente se transformou em uma luta política mais ampla envolvendo a maioria das potências europeias.
Essa guerra, cujas tendências inconstantes afetavam diversos países, desde a Suécia até a Itália, prosseguiria virtualmente até o fim da vida de Descartes, deixando imensas áreas da Europa, em especial na Alemanha, devastadas e desertas. O efeito dessa guerra, porém, parece ter sido mínimo sobre Descartes, mesmo quando ele estava no exército. Não se pode, entretanto, deixar de suspeitar que esse permanente quadro de incerteza política, conjugado a suas inseguranças psicológicas, tenha, de certa maneira, contribuído para a profunda necessidade interna de certeza que iria caracterizar toda a sua filosofia (Strathern, 2010, p. 8).
Para Haldane (1905), a dos trinta anos influenciou a decisão de Descartes de viver uma vida de relativo isolamento, concentrando-se em seu trabalho em filosofia e matemática em vez de se envolver nos conflitos políticos de sua época.
Ao longo de sua vida, Descartes foi profundamente religioso, embora suas opiniões às vezes o colocassem em conflito com a Igreja Católica. Ele acreditava que a razão e a fé não estavam em conflito, mas podiam coexistir harmoniosamente. Strathern (2010) explica que, nos seus últimos anos, Descartes mudou-se para a Suécia a convite da rainha Cristina, onde continuou seu trabalho até sua morte em 1650. Sua vida reflecte a complexa interação entre ciência, religião e política em uma era que estava lançando as bases para o mundo moderno.
- O “Discurso do Método”
O “Discurso do Método”, de René Descartes, é uma obra fundamental na filosofia moderna, onde o autor busca estabelecer um novo método para alcançar o conhecimento verdadeiro. A obra está estruturada em seis partes, nas quais Descartes expõe suas ideias sobre a ciência, a moral e a metafísica, destacando a importância da razão como guia para a busca da verdade.
Na primeira parte, Descartes introduz a ideia de que o bom senso, ou a razão, é igualmente distribuído entre os homens, e que a diversidade de opiniões decorre das diferentes formas de aplicá-lo. Ele observa que, ao longo de sua educação, percebeu que os ensinamentos tradicionais e as autoridades académicas não forneciam um conhecimento seguro, mas sim uma colecção de opiniões que muitas vezes se contradiziam. Descartes afirma:
Mas, assim que terminei todo esse ciclo de estudos, no termo do qual se costuma ser acolhido nas fileiras dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois encontrava-me enredado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais minha ignorância (Descartes, 2001, p. 8).
Na segunda parte, ele desenvolve as principais regras de seu método, que envolvem aceitar apenas o que é evidente, dividir as dificuldades em partes menores, ordenar os pensamentos do mais simples ao mais complexo, e revisar o processo para garantir que nada foi omitido. A aplicação rigorosa dessas regras permite a Descartes duvidar de tudo o que não possa ser conhecido com certeza, um processo que o leva à famosa conclusão “Penso, logo existo”. Este método é apresentado não como um ensinamento dogmático, mas como um relato pessoal: “Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha” (Descartes, 2001, p. 7).
A partir dessas premissas, na quarta parte, Descartes busca demonstrar a existência de Deus e a distinção entre a alma e o corpo. Ele argumenta que a clareza e distinção das ideias são garantias de sua verdade, e que a ideia de Deus, um ser perfeito e infinito, não poderia ter sido produzida por uma mente finita como a humana, sendo, portanto, prova de sua existência. Ele declara: “E assim a certeza de que não poderia pensar se não existisse foi a primeira que me ocorreu” (Descartes, 2001, p. 45).
Finalmente, nas partes finais, Descartes (2001) aplica seu método às questões da física e da medicina, defendendo que o conhecimento verdadeiro do mundo natural só pode ser alcançado através da aplicação das mesmas regras rigorosas de raciocínio que ele empregou em suas meditações metafísicas. Ele vê o corpo humano como uma máquina que pode ser entendida em termos de causa e efeito, semelhantes às leis mecânicas que governam o universo físico.
De acordo com Westfall (1980), o “Discurso do Método” representa um marco na história do pensamento ocidental, estabelecendo as bases do racionalismo moderno e promovendo uma visão científica do mundo baseada na razão e na dúvida metódica. A obra continua a ser uma leitura essencial para aqueles interessados em filosofia, ciência e a natureza do conhecimento humano.
- Influência de Descartes nas Ciências Políticas
Descartes, conhecido por sua contribuição à modernidade científica e filosófica, também toca em questões políticas de maneira indirecta. Da pouca literatura existente sobre o posicionamento político de Descartes, encontramos o artigo de Jean-Marie Beyssade, intitulado “Descartes político?”. Nesse artigo Beyssade argumenta que, apesar de Descartes não ter desenvolvido uma teoria política formal, seu método filosófico e sua moral provisória têm implicações profundas para a Ciência Política. “O cartesianismo permaneceu à espera de uma política que lhe conviesse e que seria apenas constituída mais tarde” (Beyssade, 2020, p. 73), sugerindo que a filosofia de Descartes preparou o terreno para o desenvolvimento de novas formas de pensar a política, mesmo que ele próprio não as tenha formulado explicitamente.
A moral provisória de Descartes, que enfatiza a necessidade de agir com base em princípios sólidos enquanto se busca a verdade, reflecte uma postura pragmática que poderia ser aplicada à Ciência Política. Beyssade ressalta que “se Descartes não redigiu política racional ou científica, também não afirmou expressamente a sua impossibilidade” (Beyssade, 2020, p. 72), indicando que a ausência de uma política cartesiana não significa necessariamente uma rejeição da política, mas talvez uma deferência à sua complexidade e ao tempo necessário para desenvolver uma ciência política adequada.
Ademais, a distinção cartesiana entre a busca da verdade e a conduta da vida também se aplica ao campo político. Descartes argumenta que, enquanto se busca a verdade absoluta, é necessário agir de acordo com as leis e costumes existentes, o que Beyssade interpreta como uma abordagem que poderia se estender à Ciência Política: “a urgência da ação que não nos permite esperar a certeza da ciência, para que nos decidamos” (Beyssade, 2020, p. 73). Isso sugere uma atitude política que valoriza a prudência e a moderação, em consonância com a moral provisória de Descartes.
Por fim, Beyssade propõe que talvez exista uma forma de política na obra de Descartes, mas que ela é mais sutil e menos evidente do que outros aspectos de sua filosofia. Ele afirma que “uma política dos choques e das reviravoltas, das descontinuidades não seria necessariamente menos atual para os desiludidos [...] com a política racional e as filosofias da história” (Beyssade, 2020, p. 77). Isso implica que a filosofia cartesiana pode oferecer perspectivas inovadoras sobre a natureza do poder e da política em contextos de incerteza e transformação, aspectos que são cada vez mais relevantes no mundo contemporâneo.
SECÇÃO II – KANT
2.1. Kant: sua vida e época
Immanuel Kant, nascido em 1724 em Königsberg, na Prússia, é um dos filósofos mais influentes do pensamento ocidental. Sua vida e obra estavam profundamente entrelaçadas com as transformações intelectuais, culturais e políticas do século XVIII. “Os pais de Kant eram religiosos. Eles foram profundamente influenciados pelo Pietismo, especialmente sua mãe, que seguia as crenças e práticas pietistas então comuns nos círculos de comerciantes e pessoas menos instruídas em Königsberg” (Kuehn, 2009, p. 55).
A educação inicial de Kant foi moldada pelo Pietismo, um movimento protestante rigoroso que enfatizava a experiência religiosa pessoal e a conduta ética. Essa exposição precoce aos valores pietistas influenciou as investigações filosóficas posteriores de Kant, particularmente sua ênfase na autonomia moral e no dever. Dekens (2008) explica que, embora Königsberg fosse considerada uma cidade provinciana, ela era um importante centro cultural e intelectual, proporcionando a Kant o ambiente para se engajar profundamente nos debates filosóficos contemporâneos.
A jornada académica de Kant começou na Universidade de Königsberg, onde ele estudou filosofia, matemática e ciências naturais. “O pensador que mais o influenciou nesse período foi o também pietista Martin Knutzen” (Marchese & Pereira, 2020, p. 2), que o apresentou às obras de Newton e Wolff. Esses estudos iniciais lançaram as bases para a filosofia crítica de Kant, que buscava reconciliar o racionalismo de Leibniz e Wolff com o empirismo de Locke e Hume.
A carreira académica inicial de Kant não foi sem dificuldades; ele passou vários anos trabalhando como tutor particular antes de garantir uma posição como professor em sua alma mater. Sua ascensão à proeminência foi gradual, e não foi até a publicação de sua obra seminal, a “Crítica da Razão Pura” em 1781, que Kant ganhou amplo reconhecimento.
A vida de Kant foi caracterizada por uma rotina notável, que se tornou lendária entre seus contemporâneos. Ele levava uma existência altamente regulada, aderindo a um cronograma diário rigoroso que equilibrava suas obrigações académicas com interacções sociais e reflexão pessoal.
Sua rotina iniciava-se às 5 horas da manhã, trabalhava até às 7 horas e ia para as aulas. A tarde fazia um passeio exatamente às 15h30m, e de tão regular e pontual, afirma-se que as pessoas da cidade acertavam o relógio com base na sua aparição para o passeio vespertino. Não tinha o hábito de jantar e recolhia-se para descanso às 22 horas (Marchese & Pereira, 2020, p. 2)
O estilo de vida metódico de Kant reflectia seu compromisso filosófico com a razão e a ordem, princípios que também fundamentavam sua filosofia moral. Ele acreditava que a verdadeira acção moral era determinada pela adesão a máximas universais derivadas da razão, em vez da busca de desejos pessoais ou influências externas, conforme explica Kant:
A regra da faculdade de julgar sob leis da razão pura prática é esta: pergunta a ti mesmo, considerando a ação que tens em vista como procedente de uma lei da natureza em que tu mesmo serias par te, se ainda poderias vêla como possível para tua vontade:rn (Kant apud Dekens, 2008, p. 107).
Esse conceito é mais famoso em sua formulação do Imperativo Categórico, que afirma: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 2007, p. 59)
Apesar de sua natureza reclusa, Kant estava profundamente engajado com as correntes intelectuais de seu tempo. Ele mantinha correspondência com pensadores proeminentes de toda a Europa e estava bem informado sobre os principais desenvolvimentos científicos, políticos e culturais da época. As Revoluções Americana e Francesa, em particular, tiveram um impacto profundo em seu pensamento, reforçando sua crença nos princípios de liberdade e autonomia. Kuehn (2009) explica que a filosofia de Kant não foi apenas uma resposta a esses eventos históricos, mas também um reflexo do projecto mais amplo do Iluminismo, que buscava avançar o entendimento humano e o progresso moral por meio da razão e da ciência.
Nos seus últimos anos, Kant continuou a refinar seu sistema filosófico, abordando questões em ética, metafísica e filosofia política. Seu trabalho sobre os fundamentos morais dos direitos humanos e a ideia de paz perpétua teve uma influência duradoura no pensamento político moderno. Kant faleceu em 1804, deixando um legado que moldou o curso da filosofia por séculos. Sua vida, embora exteriormente sem grandes eventos, foi marcada por uma jornada intelectual extraordinária que continua a ressoar com estudiosos e pensadores até hoje. Kuehn (2009) ressalta que o compromisso de Kant com os princípios da razão, autonomia e dever moral permanece como uma pedra angular da tradição filosófica ocidental.
2.2. A “Crítica da Razão Pura”
Segundo Dekens (2008), o livro “Crítica da Razão Pura” de Immanuel Kant, publicado originalmente em 1781, é uma das obras mais influentes na história da filosofia. Kant buscou responder questões fundamentais sobre o conhecimento humano, especialmente no que se refere à capacidade da razão pura de alcançar verdades independentes da experiência. A obra é dividida em várias secções, com destaque para a “Estética Transcendental” e a “Dedução Transcendental”, que estabelecem as bases para sua filosofia transcendental, explorando a natureza do espaço, do tempo e dos conceitos a priori.
Na “Estética Transcendental”, Kant argumenta que o espaço e o tempo são formas puras da sensibilidade, ou seja, eles não são propriedades do mundo externo, mas modos de percepção inerentes à mente humana. Ele afirma que “toda a nossa intuição nada mais é do que a representação do fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos” (Kant, 2001, p. 104). Isto significa que, para Kant, nossa percepção do mundo é condicionada por essas formas a priori, limitando nosso conhecimento ao mundo dos fenómenos, e não ao das coisas em si.
A “Dedução Transcendental” trata da questão de como os conceitos puros do entendimento (as categorias) podem se aplicar a objectos que não são dados pela experiência. Kant introduz o conceito de dedução transcendental como “a explicação do modo pelo qual esses conceitos se podem referir a priori a estes objetos” (Kant, 2001, p. 146). Isso é essencial para demonstrar a legitimidade do uso de categorias como causalidade, substância e unidade, que são fundamentais para organizar nossas experiências e tornar o conhecimento possível.
Outro aspecto central da obra é a análise da liberdade, especialmente em relação à causalidade. Kant distingue entre a liberdade prática, que é a capacidade de agir independentemente dos impulsos sensíveis, e a liberdade transcendental, que se refere à “espontaneidade absoluta das causas”, capaz de iniciar uma série de eventos sem ser determinada por causas anteriores (Kant, 2001, p. 426). Essa distinção é crucial para sua filosofia moral, onde a liberdade prática se torna a base para a autonomia e a moralidade.
Por fim, Kant critica a metafísica dogmática, especialmente no que diz respeito à tentativa de provar a existência de Deus através de argumentos puramente racionais. Ele conclui que “o Ser supremo mantém-se, pois, para o uso especulativo da razão, como um simples ideal” (Kant, 2001, p. 19). Com isso, Kant não nega a importância da ideia de Deus, mas limita sua aplicabilidade ao domínio prático, onde se torna um postulado da razão prática, necessário para a moralidade.
2.3. Influências de Kant nas Ciência Política
Immanuel Kant deixou uma marca indelével na Ciência Política, em particular através de sua Teoria Geral da Política. Kant concebe a política como um campo de exercício do direito, que emerge do entrelaçamento entre a racionalidade humana e as inclinações naturais. Esse entendimento kantiano da política é sustentado pela ideia de que a história humana progride em direcção a uma ordem racional, onde o direito deve ser implementado em conformidade com as exigências morais universais. Como Fernandes aponta, “para Kant, a política é o processo de execução do direito pelo vínculo entre racionalidade e propensões espontâneas” (Fernandes, 2018, p. 462), o que demonstra a intrínseca relação entre a moralidade e a prática política na visão kantiana.
A filosofia política de Kant também enfatiza a centralidade da razão na conduta humana, opondo-se a qualquer forma de moralidade baseada em emoções ou inclinações individuais. A moralidade, para Kant, deve ser universal, e as leis morais devem ser aplicadas igualmente a todos os indivíduos, sem exceções. Como Dekens (2008) observa, Kant afirma que a conduta moral não deve ser estabelecida pelos sentimentos, mas pela racionalidade, o que implica que as acções políticas devem ser guiadas por princípios racionais e não por interesses particulares ou emotivos. Fernandes (2018) explica que esse princípio racionalista fundamenta a ideia de um contracto social onde os indivíduos, como legisladores racionais, participam na formulação das leis às quais estarão sujeitos.
Kant propõe que a liberdade individual é um componente essencial da estrutura política, mas que essa liberdade deve ser harmonizada com a liberdade dos outros através de leis universais. Ele vê o direito como um sistema que regula as acções dos indivíduos para garantir a coexistência pacífica e justa na sociedade. Assim, Kant define o direito como “o agrupamento das circunstâncias em que a decisão de um pode adequar-se com a decisão de outro de acordo com uma legislação geral da liberdade” (Fernandes, 2018, p. 459). Dessa forma, a coação legal se torna legítima na medida em que assegura a liberdade colectiva, garantindo que a liberdade de um não comprometa a liberdade do outro.
Finalmente, a concepção kantiana da liberdade está intimamente ligada ao conceito de propriedade privada e ao Estado de direito. Para Kant, a propriedade é um direito natural que deve ser protegido pelo Estado, que, por sua vez, tem a obrigação de garantir que todos os indivíduos possam exercer suas liberdades de maneira equitativa. Como Dekens (2008) salienta, a liberdade apenas é presente porque existe coação, existindo liberdade para realizar tudo o que a legislação não veda, demonstrando como Kant integra a liberdade individual dentro de uma estrutura jurídica que limita a arbitrariedade e protege os direitos de todos.
Referências bibliográficas
Beyssade, J. M. (2020). Descartes político? Analytica, v. 24, n. 1-2, pp. 70-78.
Dekens, O. (2008). Compreender Kant. São Paulo: Loyola.
Descartes, R. (2001). Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes.
Fernandes, A. J. (2018). A contribuição de Immanuel Kant para a ciência política. Belo Horizonte, III Congresso Interdisciplinar de Pesquisa, Iniciação Científica e Extensão, pp. 452-463.
Haldane, E. (1905). Descartes: His life and times. London: John Murray.
Kant, I. (2001). Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Kuehn, M. (2009). Kant: A biography. Cambridge-New York-Melbourne: Cambridge University Press.
Marchese, F., & Pereira, E. M. Immanuel Kant: Vida, Obra e Contexto Histórico. Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Superior – GEPES, pp. 1-10.
Strathern, P. (2010). Descartes em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Watson, R. (2007). Cogito, ergo sum: The life of René Descartes. Boston: David Godine Publisher.
Westfall, R. (1980). La construcción de la ciencia moderna: mecanismo y mecánica. Barcelona: Editorial Labor S.A.