A idealidade do belo na Antiguidade

Em muitas discussões atuais sobre a arte e a estética surge a posição de que o belo seria algo ultrapassado, já que as manifestações artísticas contemporâneas incorporam noções de valor estético que vão muito além do conceito tradicional de beleza.

É interessante observar que o acerto parcial dessa posição diz respeito a algo que não é comumente levado em consideração, a saber, que a discussão sobre o belo é quase tão antiga quanto a própria filosofia e é exatamente por ela que iniciamos nossa breve consideração, procurando mostrar em que condições e em que circunstâncias históricas surgiram na investigação filosófica noções como as de sublime e de juízo estético.

Sobre a antiguidade do conceito de belo, cumpre observar que ele aparece em vários diálogos platônicos, tais como Íon, Górgias, Crátilo, Banquete, Fé- don, República, Fedro e Sofista, se bem que com significado e peso “ontológico” variados.

De um modo geral, pode-se dizer que, nos três primeiros diálogos mencionados, o belo é pensado principalmente como atributo característico de certos objetos sensíveis merecedores dessa qualificação, enquanto, nos cinco últimos, o estabelecimento, por Platão, da sua teoria das ideias pressiona claramente na direção da idealidade do belo, ou seja, para uma posição segundo a qual a beleza sensível é, no mínimo, insuficiente e que o belo verdadeiro seria uma ideia correlativa à do bem, habitando um mundo separado do da nossa percepção imediata.

Como exemplo da posição mais precoce de Platão, podemos mencionar um trecho do Górgias, no qual há uma referência à beleza enquanto substantivo abstrato, ainda que num sentido muito genérico.

Trata-se de uma passagem em que o interlocutor de Sócrates admite que os belos corpos, as cores e os sons produzem deleite sensível e estabelece que a beleza advém ou da utilidade ou do prazer que o objeto belo proporciona (ou ainda de uma combinação de ambos) (474d-475c).

Como exemplos da posição posterior – definitiva – de Platão do belo como ideia transcendente, poderíamos mencionar o Banquete e a República. Naquele, que tem como tema o amor, Platão estabelece, através do discurso de Sócrates (198a ss.), que a beleza sensível possui um alcance limitado quando comparada com a inteligível, na qual a própria ideia do belo se realiza.

No seu discurso, Sócrates narra o seu encontro com a sacerdotisa Diotima, no qual a natureza do amor se revela como a procura do belo (210e ss.). Esse percurso se realiza de acordo com o modelo da “dialética ascendente”, à medida que Platão admite que a busca se inicia no desejo dos belos corpos, terminando, se corretamente conduzida, na contemplação da beleza em si mesma, isto é, na própria ideia do belo.

Em todos os diálogos posteriores de Platão, consolida-se progressivamente o conceito de um belo em si, transcendente, o qual dá fundamento a toda a beleza que se manifesta nos objetos sensíveis, sem ser, como ela, transitória ou relativa.

Desse modo, Sócrates declara, no Fédon, que [...] se alguém me diz que uma coisa qualquer é bela, seja por sua cor brilhante, ou por sua forma, ou por qualquer outro motivo desse tipo [...], tenho em mim essa simples e talvez ingênua convicção de que não a torna bela outra coisa que a presença ou participação daquela beleza em si, tenha-a por onde for e de que modo for (100b ss.).

As noções, introduzidas nos diálogos supramencionados, têm sua apoteose na República, texto em que Platão, objetivando investigar as condições em que uma cidade poderia ser perfeita (pelo menos na sua concepção), simultaneamente reconhece o imenso poder de sedução das formas sensí- veis qualificáveis como “belas” e procura enquadrá-las dentro de limites que as impeçam de desviar o caminho rumo à contemplação da beleza em si mesma.

A isso se liga a famosa passagem desse diálogo, em que se declara a necessidade de submeter todas as artes a uma implacável censura (386a e ss.), a qual culmina com o imperativo de expulsar o poeta da cidade ideal, mesmo que se lhe prestem homenagens pelo seu poder divino (398b).

Segundo Platão, só seriam admitidas as artes que aceitassem explicitamente a subordinação da beleza corpórea à ideia do belo, tanto no âmbito de seus criadores quanto de seus apreciadores. Quanto a esses, o Sócrates platônico condena veementemente os “amantes das audições e dos espetáculos” que “se comprazem em degustar boas vozes, cores e formas e todas aquelas coisas, nas quais entram esses elementos”, mas cuja “mente não é, ao contrário, capaz de ver e abraçar o belo em si mesmo” (476a).

No que tange aos criadores, haveria que se exercer uma vigilância sobre eles no sentido de admitir apenas os que conhecem a verdadeira origem da beleza, ou seja, a ideia do belo (401a).

A grande influência dessa posição platônica pode ser sentida, por exemplo, no pensamento do neoplatônico Plotino (205-270 d.C.). Toda a sexta se- ção de sua primeira Enéada é dedicada ao belo e, apesar de algumas diferenças de ordem metafísica, referentes ao modo como o belo inteligível se articula com a beleza das coisas sensíveis, e uma ênfase especial na sua dimensão ética, a mesma concepção da superioridade da ideia do belo sobre suas manifestações perceptíveis que encontramos em Platão reaparece claramente em Plotino (2000, p. 25): Quanto às belezas mais elevadas, que não podem ser percebidas pelos sentidos, mas que são vistas pela Alma e a respeito das quais ela se pronuncia sem o auxílio dos órgãos dos sentidos, para contemplá-las temos que nos elevar ainda mais, abandonando os sentidos embaixo. Assim como aqueles que nasceram cegos não podem falar a respeito das belezas sensíveis, assim também não é possível se falar a respeito da beleza das condutas, das ciências e de outras coisas semelhantes sem ter antes se interessado por essas questões.