Por: Ergimino Pedro Mucale

 

Resumo


O Afrocentrismo ou Afrocentricida é um modo de pensamento e acção que preconiza a colocação da África e dos africanos no centro de todos os interesses e perspectivas (Asante, 2003: 2).
Isto implica que, nesta visão, os africanos são e devem ser vistos como agentes e não como objectos, fautores da sua própria identi- dade e história, e não meros reféns de uma historiografia “emprestada” ou imposta de fora (principalmente pelo Ocidente).

É neste contexto que urge questionar sobre a (im)pertinência de o Afrocentrismo, que já mostra resultados encorajadores nos EUA e na RSA, servir de paradigma para ajudar Moçambique pós- colonial a ser protagonista do seu próprio destino, numa altura em que uma nova e mais sofisticada onda de imperialismo assola quase todo o mundo.

Introdução


Desde o século XV, sob um falso pretexto de “civilizar” e “evangelizar” os moçambicanos, os portugueses foram instalando-se em Moçambique, explorando tanto os recursos naturais bem como os humanos. Tomando os preconceitos ideológicos apologistas da tese pseudo-científica da inferioridade ontológica do negro em relação ao branco como subterfúgio, os colonos portugueses alienaram os moçambicanos. Muitos destes últimos, como os “assimilados”, chegaram a desdenhar a sua identidade genuinamente africana.

Na expressão de Mbiti (2002), referindo-se aos africanos no geral, dir-se-ia que foram “desenraizados, mas não necessariamente transplantados”. Outros não foram desenraizados das suas culturas, contudo também eles nutriram-se, progressivamente, dos efeitos da colonização. Este acto era visto pelos ocidentais como uma missão salvífica, uma prerrogativa reservada aos que se consideravam “descobridores”, “civilizados” e, portanto, “senhores” do mundo daquele tempo.

A questão da responsabilidade pelo passado: culpa na inocência


O auge e o decurso da colonização suscitam diversas questões, sobretudo pelo facto de ter sido uma minoria quantitativa a dominar a maioria e de várias formas. Indagar ou problematizar a história tem a sua razão de ser. Sem uma atitude crítica e reflexiva sobre a história, corre-se o risco de não se ter um futuro melhor do que o passado colonial.

Não se trata de negar inadvertidamente a história, e sim de questioná-la, à luz da razão, a fim de compreender-se melhor os imperativos que ditaram o infortúnio a que os moçambicanos, e não só, foram votados outrora, para poder-se fazer uma nova hermenêutica existencial, com vista a não se repetir a mesma sorte de outrora.

A escravatura e a colonização cometeram genocídio e os africanos devem ser indemnizados. Contudo, não se negligencie que a derrota inicial destes últimos deveu-se, em parte, a uma deficiente coesão e a um débil engajamento pela própria auto-afirmação dos africanos. Aliás, dada a sua hospitalidade, os africanos insurgi- ram-se relativamente tarde contra as investidas dos colonos, facilitadas pela astúcia destes e pelo recurso à tecnologia mais avançada. O Ocidente ascendeu em virtude da sua capacidade de organização e do exercício da força ou “revolução militar”. Isto é, como diz Huntington (2001: 57), graças à “sua superioridade em aplicar a violência organizada”, inclusive instrumentalizando a religião.

Alguns autores europeus, como Hegel (1995), negaram aos africanos qualquer lugar na história. Estes eram vistos como os inexistentes, excluídos ou ausentes da história. Depois foram “incorporados” como objectos ou periféricos. Tudo pelas mesmas razões: a racionalidade, a liberdade e a agência foram recusadas ao não-ocidental, especialmente ao negro. Seja como for, os africanos e outros oprimidos são responsáveis pela sua “passividade” e pelo seu “mutismo” perante as atrocidades do Ocidente. Os etnocentristas ocidentais, é óbvio, possuem a sua culpa; as vítimas têm a sua responsabilidade: estas são responsáveis pela sua irresponsabilidade, a de terem admitido a sua deshumanização.

Depois de vencida a longa guerra anticolonial e em prol da libertação dos homens e da Terra, em Moçambique, proclamou- se a pretendida “Independência total e completa”, em 1975, que não foi um dado fortuito nem um donativo altruísta do colonizador, como se o diabo virasse anjo, mas uma conquista dos moçambicanos e seus aliados.

A proclamação da Independência era o término da ocupação colonial efectiva em Moçambique, mas não propriamente o fim da colonização. Com ela, indubitavelmente, diminuiu-se o jugo, porém não foi tirado definitivamente; removeu-se a canga, outrossim ainda se tem o freio da inferioridade ancorado em certos moçambicanos.

Em parte está o neoimperialismo dissimulado, mas também em muitos deles ainda há vestígios e até “saudades” do imperialismo ocidental. Hoje, parece que são os próprios africanos no geral que se resignam ao Ocidente, como quem pede ou facilita uma nova colonização (Mucale, 2010: 3), no campo cultural, político-ideológico, económico, técnico-científico.

A Responsabilidade pelo Presente: em Busca de Autenticidade


Os vestígios da colonização remanescentes cegam muitos africanos, ao ponto de não reconhecerem a existência de uma nova vaga de imperialismo, e geram cepticismo frente à capacidade de a África salvar a África. Um dos maiores actos do imperialismo – que deve ser considerado “crime contra a humanidade” – para além da escravatura e colonização visíveis, é a “subjugação metafísica”, um “personacídio” que consistiu em os opressores europeus negarem a dignidade dos oprimidos. Vale dizer, os colonos descon- figuraram a mentalidade dos africanos e a formataram ao seu bel prazer – através da educação, evangelização e civilização eurocêntricas e subjugadoras.

O imperialismo europeu, para a África, foi propriamente um processo de desafricanização e ocidentalização, isto é, desper- sonalização e alienação dos negros africanos. A título de ilustração, o africano, na primeira lição da educação colonial, aprendia a sua autonegação como pessoa, a renúncia da própria cultura e seus correlativos.

O sistema educacional colonial, como revela Mondlane (1975: 69), estava totalmente fora do contexto, obrigava os africanos a desprezarem seus antecedentes e visava, entre outros vexames, tornar servil o africano educado (deseducado?).


Não obstante o processo de auto- afirmação dos africanos estar a decorrer, sobretudo desde a década de 1960, há ainda muitos desafios e dificuldades. Desde os princípios e como consequência do imperialismo ocidental, falhou-se por falta de autenticidade. Confundiu-se a modernização com a ocidentalização. Muitos dos países africanos – como outros outrora colonizados – herdaram a administração ocidental, adoptaram sem
adaptar suficientemente bem a concepção ocidental de Estado-nação. Ao invés de os líderes africanos re-africanizarem a África, continuaram a ocidentalizá-la, e muitos ainda o fazem hodiernamente.

Esquecendo-se da sua base europeia (eminentemente economicista e não personalista), em Moçambique “preferiu-se” o Socialismo ao Capitalismo, num acto que, consequente do imperialismo ocidental, levou a FRELIMO e a RENAMO a tornarem quente, neste país, uma guerra que era fria em outras partes do mundo. Se o colonialismo tinha empobrecido o país, esta última guerra  da materialização do ódio entre a ex-URSS e os EUA tornou-o ainda miserável.

Com a derrocada do murro de Berlim em 1989  que representa a vitória do Capitalismo e, como diria Fukuyama, o “fim da história” e uma vez desvendada a hipocrisia de Moçambique, mudou-se do Socialismo um sistema que nem na Europa teve sucesso (Ivanov, 1987)  para o mesmo Capitalismo que outrora se combatia, mas se manteve ou se piorou a dependência.

O principal problema não foi a “opção” pelo Socialismo, mas a não adequada africanização, ou melhor ainda, moçambicanização desse Socialismo. Isto é, houve deficil de autenticidade e de apropriação e excesso de apego, devoção e servilismo ao alheio.

A responsabilidade pelo futuro: abrindo novos horizontes


A ausência de total inocência dos africanos pelo passado e pelo presente remete a uma cada vez maior responsabilidade pelo futuro. A distracção aquando do despontar da opressão e a imitação ao Ocidente após as independências e liberdades dos africanos levaram-nos ao fracasso. Urge enfrentar-se o desafio de autenticidade e criatividade na abertura de novos horizontes e apropriação dos já existentes.

Sem uma mudança radical de atitudes, um renascimento cultural, nada impede a reedição da opressão e pilhagem no presente e no futuro. Sem agência, em África, ter-se-á preferido o mau ao pior; ter-se-á substituído inimigos reais por amigos desleais. Sem um protagonismo sério dos Estados africanos, as liberdades individuais e soberanias, em África, resumir-se-ão numa miragem: ter-se-á um papel meramente formal. Por ora, a realidade parece clara: uns seguram o volante, mas não são condutores, porquanto quem dita as manobras, indica a via e predetermina o destino da África, em quase todos os sentidos, é o Ocidente, coadjuvado pelas potências emergentes.

Para o Afrocentrismo, os africanos são o que fazem de si, não o que outros fizeram deles (Asante, 2003: 145). Isto significa que urge olhar-se para o futuro sem preconceitos, em prol da libertação de todos os homens, opressores e oprimidos. É chegado o tempo de os africanos serem efectivamente arquitectos da sua consciência, mente, cultura. Tendo volição e inteligência, que escolham em que alicerces axiológicos devem reabilitar/plantar as suas formas existenciais: se nos valores pré- coloniais, nos coloniais ou se nos neo- coloniais.

Entendemos existirem duas atitudes urgentes e complementares a tomar. Por um lado, na linha de Frantz Fanon (sa: 365), os africanos devem decidir não imitar a Europa e orientarem os seus músculos e os seus cérebros numa nova direcção, procurando

inventar o homem total que a Europa foi incapaz de fazer triun- far.” Por outro lado, os africanos têm que ser capazes de “impor uma visão e uma vontade africana na política e na economia mundial” (NGOENHA, 1994: 128).


Não se trata de a África procurar substituir o Ocidente na subjugação dos “outros”. Ela não deve nem alienar-se
nem isolar-se do resto do mundo, mas, sim, consolidar a sua autonomia e participar do “sistema global” como protagonista. É tempo de a África sair da minoridade a que foi sujeita e criar o seu futuro sem amarras do passado e sem ditador, mas apenas com parceiros.

Conclusão


Tentamos defender que a culpa do Ocidente não é sinónimo de inocência completa dos africanos, que ajudaram o Ocidente a ser quem tem sido. Se a Europa tem magalomania, um desmedido complexo de superioridade, foi por os oprimidos terem aceite que se-lhes incutisse a síndrome de inferioridade. O Ocidente tornou-se potência porque os não- ocidentais aceitaram ser reduzidos à impotência. A Europa desenvolveu-se muito porque se consentiu subdesenvol- ver a África.

O Afrocentrismo insta a lutar- se por um futuro diferente, no qual a África e os interesses dos africanos predominem. Assim, ele é um instrumento válido para erradicar os vestígios psicológicos da colonização, da opressão, do imperialismo e prosseguir a missão dos africanos no geral e dos moçambicanos em particu- lar: a afirmação da sua autenticidade, vontade e autonomia em todos os sentidos e domínios.

A libertação e independência não se resumem no acto simbólico da descida da bandeira do colono; devem ser seguidas pelo içar do estandarte cultural e civilizacional, da centralidade e dos interesses dos africanos em tudo o que a eles diz respeito. Como senhores da sua liberdade e autores da sua história, no mundo global ou neo-imperialista, a tarefa dos africanos não é a de assistirem como eternos globalizados, mas de intervirem como co-globalizadores.

Eis por que entendemos ser urgente e necessária a apropriação do Afrocentrismo em Moçambique, quer no modus vivendi e operandi de cada um quer nos curricula secundários e universitários. Este é o tempo!

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Bibliografia


Asante, M. K, 2003. Afrocentricity: the Theory of Social Change,

African Ameri- can Images, Illinois. Asante, M. K., 1998. The

Afrocentric Idea. Temple University Press, Philadelphia

Fanon, F., sa. Os Condenados da Terra. Terceiro Mundo e Civilização, sl.

Hegel, G. W. F., 1995. A Razão na Histó- ria: Introdução à Filosofia da História Uni- versal. 70, Lisboa

Huntington, S.P., 2001. O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mun- dial. 2ª ed., Lisboa: Gradiva.

Ivanov, A., 1987. Opção Socialista em África: Polémica Ideológica. Moscovo: Progresso.

Mendes, J., 1994. A Nossa Situação, o Nosso Futuro e o Multipartidarismo. Maputo: Tempográfica.

Mondlane, E., 1975. Lutar por Moçambi- que. Sl.: Terceiro Mundo.

Mucale, E.P., 2010. O Afrocentrismo em Asante: um Paradigma Libertador?. Licenciatura. Universidade São Tomás de Moçambique.

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