Integridade e as relações Saúde-trabalho

Etimologicamente a palavra integridade, deriva do verbo integral, ou seja, o que não foi tocado, o que não foi quebrado (Cristófaro, 2008,p.3). Com evolução este conceito, na perspectiva de mudança de modelo centrado na doença para o modelo com base na saúde tem vindo a sustentar discussão política e pública na organização do sistema de saúde que evidencia o método centrado na perspectiva da integridade.

Segundo a OMS- 1948, define saúde como sendo o estado mais completo do bem-estar físico mental e social e não apenas ausência de enfermidade. É com base nesta definição que a integridade toma lugar olhando para os problemas de saúde no geral e não apenas enfermidade como antes se considerava.

Assim, LALONDE, 1974 remete a categoria de assistência médico-hospitalar desenvolvendo o conceito de saúde que abrange 4 componentes: A biologia humana; O meio ambiente; O estilo de vida e Organização da assistência à saúde.

A integridade nos casos a cima aparece como expressão de protecção, cura, reabilitação, prevenção e controlo.

A carta de OTTAWA, Canadá, 1986 enfatiza pré-requisitos fundamentais para a saúde: a paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade (Brasil, 2002,p.20).

A relevância do conceito de integridade ganhou espaço com criação do sistema único de saúde (SUS), de 1988 que aceitou os textos legais subsequentes á Carta Constitucional confirmando o sistema de saúde brasileiro com um eixo doutrinária hoje consagrado que tem como princípio a universalidade, a integralidade e equidade.

Para além do significado clássico que intenciona aproximar a prevenção e cura ao nível de acção em saúde, o conceito pode ser entendido, ainda, como intenção totalizadora de abordagem em saúde. Ou seja internalizar o cidadão usuário nas suas necessidades, nas acções e serviços a ele direccionados, nos sistemas de informação em saúde, na estruturação de recursos, enfim, nas políticas públicas de saúde, entendidas no caso brasileiro como sistémicas.

Nas relações de saúde-trabalho, o que nos interessa mais neste texto, é a incorporação da integridade que constitui um desafio para a concretização da saúde dos trabalhadores no âmbito da reforma do modelo de atenção à saúde.

 A integralidade nessa matéria implica aproximações sucessivas entre prevenção, promoção protecção, recuperação, e reparação dos danos à força do trabalho.

Doenças relacionadas ao trabalho 

As informações recolhidas nos sectores ou empresas onde se localizam os problemas, entram como dados brutos isolados depois saem como grandes sistemas classificatórios de abrangência nacional. É neste contexto que para a compreensão da doença relacionada ao trabalho, centrámo-nos nesses grupos classificatórios de doenças resultantes do trabalho como por exemplo:

A tísica, nos coveiros e oleiros; a pleurite nos vidraceiros, fabricante de espelhos, padeiros e moleiros; a hérnia nos carregadores e cantores; as varizes, nos que trabalham de pé; a asma nos estanhadores e mineiros; a úlcera nos cavaleiros; a hidropisia, nos coveiros e salineiros; a síndrome dos que lidam com mercúrio, etc.

Ramazzini fez suas observações algumas décadas antes da revolução industrial, pois, era um novo formato de relações sociais de produção, pois o interesse do capitalismo emergente centrou-se na sua preservação para produção da força de trabalho, sem considerar a complexidade das condições que afectam a saúde na totalidade da dimensão humana.

Isto culminou com a criação duma norma cujo reconhecimento de doença sujeitou-a se ao regramento definitivo em contrato como ocorre até hoje.

A exposição acumulada de diversos agentes causais sobre o corpo trabalhador, com efeitos múltiplos, é ainda um campo inexplorado de saúde ocupacional. Podemos deduzir, portanto, que a classificação de doenças relacionadas ao trabalho, utilizada actualmente na maior parte dos países (OIT, 1998), considera como entidade nosográfico a doença focada por aparelho ou seguimento do corpo trabalhador, associada a uma base etiológica restrita a agentes específicos de risco, perdendo sua capacidade holística de ver o dano em sua totalidade, como a integridade em saúde nos recomenda.

A perspetiva da integridade em Bernardino Ramazzini

Na sua obra original italiana- de Morbis Artificum  Diatribadatada de 1700 ,  revista  e  acrescida em 1713, Ramazzini identificou  diversos aspectos concernentes às doenças relacionadas ao trabalho, cujo formato descritivo remete à visão integralizadora da saúde. Observando o modo de adoecimento dos trabalhadores em seus ofícios e suas condições de vida e trabalho, Ramazzini fundamenta solidamente sua base conceitual de análise na ideia do que achamos hoje de integridade, com destaque às variáveis componentes das políticas públicas voltadas para a saúde dos trabalhadores (prevenção, promoção, protecção, recuperação e reparação dos danos).

Na revisão bibliográfica efectuada, como já foi dito, assinala-se alguns aspectos focados em sua obra por outros autores, como por exemplo: MENDES 2000- destaca a actualidade da obra, anamnese ocupacional, a determinação social, a classificação das doenças, inclusive com diferença entre doenças profissionais (tecnopatias) e as que são adquiridas pelo modo como o trabalho é realizado (mesopatias).

Ferreira (2001) – Observa a estrutura ordenada: descrição do ofício, exame clínico e bibliografia, terapia e sugestões gerais e específicas sobre o estilo de vida e trabalho.

Franco e Franco (2001) – ressaltam a observação sobre doenças causadas por posturas forçadas.

Araujo-Alvares e Trugillo-Ferrara (2002) destacam a inovação de Ramazzini ao identificar o aspecto evolutivo da cronicidade das doenças. Comentam o método de observação directa aos processos de trabalho e visão crítica dos dogmas da época, como por exemplo, citam a reivindicação de necrópsia, visando comprovar as alterações que seu senso clínico reconhecera.

Se tivessem – dissecado qualquer cadáver desses obreiros e de outros, voluntariamente, isso seria comprovado, porém, não se consegue do nosso povo, nem com as súplicas nem com oferecimento de dinheiro, inspeccionar quem morre de doença não vulgar; até mesmo se alguém o pede invocando o benefício público, enfurecem-se com o médico que quer averiguar a causa da morte que ignora

 Seguindo uma descrição ordenada, coerente e abrangente, Ramazzini possuía um método de observação empírica, cuja base de sua pesquisa pautava-se na observação minuciosa do doente, no ofício causador da doença, de modo a evitá-la, no seu tratamento e no contexto social e ambiental em que os factos ocorriam.

Ramazzini desenvolveu seu método e plasmou diversos conceitos com observações assentadas em extensa revisão bibliográfica, conforme foi estudado por Pericle di Pietro citado por Mendes (2000,p,281), que inclui 182 autores e que, acrescidas referências e citações alcançam a cifra de 540.

 O percurso da sua obra é pavimentado com a ideologia da integridade, fundamentado numa arte médica preventivo – curativo que se passa no contexto social e de vida onde os trabalhadores exercem seus ofícios e deles morrem, quando, segundo o autor, deveriam deles viver.

A observação empírica do autor harmoniza-se com o direito saúde dos trabalhadores, na perspectiva da integridade, em que prevenção, promoção, protecção, recuperação e reparação

Podem ser consideradas como suas matrizes. Esses elementos se encontram aqui e acolá, de divisas maneiras e a ideia de direito à saúde está explícita em sua obra (2000,p,21).

O binómio, prevenção-cura, cujo evoluiu histórico da ciência médica pendeu para o segundo termo da expressão, criando hegemonia do modelo medicocêntrico, em Ramazzini não causava cismas: saber aquilo que se pode sugerir de prescrições médicas preventivas ou curativas, contra doenças dos operários.

Quanto à recuperação da saúde, a obra pauta intensamente na semiótica e na terapêutica em que o autor, além de usar sua experiência clínica acumulada, recorre fartamente à bibliografia disponível de célebres estudiosos que se dedicam ao estudo de doenças relacionadas ao trabalho, como Hipócrates, Galeno e Agrícola.

A reparação do dano, princípio de seguridade social considerado um componente da atenção à saúde dos trabalhadores, no sentido de integridade, pode ser percebido no seu espectro de visão do complexo saúde-doença dos trabalhadores embora não se consiga reparar aquilo que não é reparável.

O Método de Ramazzini na perspetiva da integridade

Em suas observações, o autor segue um método que pode ser tido como clínico epidiomológico, calcado numa base de determinação multicasual. Neste, Ramazzini observa, gera dados, infere, analisa factores, contextualiza, gera informação, trata e acompanha a evolução dos casos.

Estas suas observações podem ser sistematizadas em 10 passos metodológicos a saber:

  • A descrição do ofício;
  • Sua relevância social e as relações sociais envolvidas;
  • A análise do processo, do ambiente e da organização do trabalho;
  • Os riscos e cargas a que os trabalhadores são expostos;
  • As doenças agudas e crónicas que os afectam;
  • A fisiopatologenia dessas doenças;
  • O seu aspecto epidemiológico;
  • O seu tratamento;
  • A sua prevenção e
  • . As relações com o meio ambiente ‘externo’.

 Para ilustrar seu método, deu exemplos de cada um desses passos como a seguir se descrevem:

Quanto à descrição do ofício

Ramazzini busca a razão de ser e existir do tipo de actividade humana estudada, situa o sujeito e seu ofício no centro da sua observação, considerando-os ofício e sujeito como unidade matriz de uma epistomologia inaugural do mundo de trabalho em relação com a saúde e a vida.

Relevância social do ofício e as relações sociais evolvidas

São uma tónica na observação do autor, que assim parece, demonstrar sua intenção de trazer à luz o que passa despercebido à sociedade, a fragilidade das relações sociais do convívio entre os homens sem concorrência dos trabalhadores morrendo em seus ofícios.

Análise do processo, do ambiente e da organização do trabalho

O autor abre caminho para com a compreensão dos danos à saúde e para a sua solução a nível de sua determinação.

Esse argumento metodológico é um dos factos que contribuem para que Ramozzini fosse ‘impropriamente’ rotulado aos quatro cantos como ‘pai da medicina do trabalho, (Vasconcellos e Pignati, 2006,p.1112) A medicina do trabalho, nascida após a Revolução Industrial, portanto posterior a Ramazzini, ao adequar os trabalhadores individualmente aos processos produtivos, acaba por evitar que os efeitos nos colectivos de trabalhadores esclareçam os vínculos entre doenças e trabalho (waissmann, 2000). Do mesmo modo Graça (2002) considera espontânea e abusiva essa denominação atribuída a Ramazini, acrescentando que o autor poderia ser considerado, tão-somente, fundador da patologia clínica ocupacional ou da epidemiologia ocupacional.

Os riscos e cargos a que os trabalhadores são expostos

Os clássicos riscos físicos, químicos e biológicos contemplados no programa de prevenção de riscos ambientais, merecem lugar destacado. Além dos riscos químicos, presentes em muitos dos ofícios e detalhados com precisão (mercúrio, chumbo, estanho, diversas poeiras), são considerados o risco biológico, como nas parteiras e nos mineiros, onde há males ainda mais terríveis, como as pestes animadas que molestam os míseros cavouqueiros, sob a forma de pequeninos insectos que picam neles e inoculam o mal. E o risco físico, observado com precisão em outros tantos ofícios: calor, frio, radiação solar, humidade, ruído. As cargas de trabalho, tanto psíquicas quanto físicas estão presente, com descrição compatíveis com o actual estado de arte, como é o caso das doenças dos carregadores, em que o autor analisa com precisão, aspectos biomecânicos de suas actividades.

Na etapa de seu método destinada ao reconhecimento das doenças provocadas pelos diversos ofícios os diagnósticos se reportavam ora a síndromes de correntes de um conjunto de complexos de sinais e sintomas, ora á doenças clássicas, à época já bem delimitadas. Algumas vezes, as manifestações eram distinguidas em agudas ou crónicas.

Fisiopatogenia das doenças – além da analogia que faz com as características dinâmicas da cal, descrita anteriormente ,o autor observa o porquê do desenvolvimento das hérnias nos mestres de dicção, dos cantores e outros desse género.

O seu aspecto epidemiológico – este servia para procurar respostas á questões centrais da epidemiologia descritiva, como: quais os trabalhadores adoecem onde, quando, porque, como, (Perreira 1995)

O seu tratamento para melhor visualizar as modalidades terapêuticas utilizadas categoriza-las em tratamentos de suporte, paliativos e curativos (medicamentos ou interventivos).

Os tratamentos de suporte eram preconizados quando não houvesse terapia adequada conhecida, caso do unguento de óleo de amêndoa doces nas partes internas dos ouvidos dos bronzistas, ou como coadjuvante, caso da recomendação de limpeza e mudança de roupa contra os piolhos nas doenças dos padeiros e moleiros.

Tratamentos paliativos eram propostos em situações dramáticas e terminais, como emulsões de sementes de melão para doença pulmonar obstrutiva dos gesseiros.

Tratamentos curativos medicamentosos eram os mais comuns, utilizados criteriosamente consolida base de referência em praticamente todos os ofícios, como o emprego de mercúrio doce, fecto, clister, antimónio e pedra de bezoar nas afecções asmáticas dos mineiros.

Os tratamentos curativos e interventivos eram os que dependiam das lancetas dos cirurgiões, como as sangrias nas oftalmias graves dos ferreiros e as ventosas escarificadas nas febres A sua prevenção continua dos agricultores.

Ramazzini em seu método valoriza o princípio de prevenção em distintas abordagens, como na utilização de equipamentos de protecção colectiva, uso de máquinas pneumáticas para a retirada do ar viciado das minas, e de protecção individual, uso de bexigas e mascaras de vidro para evitar a aspiração de pó, luvas, polainas, óculos etc.

Para reduzir o risco de contrair doenças outras medidas são aplicadas tais como: diminuição da jornada de trabalho, adopção das pausas (dos joalheiros), respiração de ar puro (dos trabalhadores de fumo), alternância de posições (dos que trabalham em pé) alimentação adequada, banhos etc.

Toda via, mesmo com o conhecimento destas estas medidas não é possível a sua total implementação enquanto se mantém a causa ocasional que os impõe á necessidade de ganhar o pão de cada dia para si e para suas famílias.

A relação com o meio ambiente destaca o relato de uma demanda judicial para que uma fábrica de cloreto de mercúrio fosse transferida para da cidade (Gomes 2000.p.304).

Nos 10 passos do seu método é patente a participação da integridade como categoria transversal às suas observações

 

Referências bibliográficas

In: Ramazzini, Bernardino, as doenças dos trabalhadores. Tradução de Raimundo Estrela. 3 ed. S.paulo: Fundacentro, 2000.

Rosen, Georges, uma história de saúde pública. S. Paulo: Hucitec: editora da Universidade paulista de medicina. Rio de Janeiro: Abrasco. 1994

Vasconcellos, LuizCarlos Fadel; Olveira, Maria Helena Barros. Direitos humanos e saúde no trabalho. Saúde e direitos humanos. V4, n.4,p.113-134, 2008.