RESUMO CRÍTICO DA OBRA DE MAX SCHELER

Max Scheler, em sua obra “Diferença essencial entre Homem e Animal”, debate a distinção fundamental entre humanos e animais, especialmente no que diz respeito à presença e natureza do espírito. Scheler rejeita duas visões extremas: uma que atribui apenas diferenças de grau entre humanos e animais, reservando para o homem apenas uma inteligência e escolha ampliadas; e outra que nega qualquer diferença essencial, considerando que os animais já possuem inteligência.

 

  1. A essência espiritual do homem

Scheler (2008, p. 8), argumenta que a essência do homem transcende a inteligência e a escolha, representando um princípio único e oposto à vida em geral, denominado “espírito”. Esse espírito não se limita à inteligência, abrangendo também intuição, emoções, e livre decisão, caracterizando a pessoa humana.

Scheler (2008, p. 8) destaca a capacidade única do ser humano de se “abrir ao mundo”, objectivando não apenas os objectos exteriores, mas também sua própria constituição e vivências mentais. Essa abertura ao mundo é acompanhada pela auto-consciência, que falta nos animais, e pela capacidade de renúncia livre à própria vida.

Ao longo da história da filosofia, vimos que essa distinção entre o espírito e os objectos exteriores (como o corpo) levanta sérios problemas – como o caso do dualismo cartesiano entre mente-corpo. A separação absoluta entre o espírito e o corpo pode ser questionável à luz das descobertas mais recentes da neurociência sobre a interconexão entre mente e corpo.

 

  1. A subjectivação

Doravante, Scheler (2008, p. 11) contrasta a natureza estática do animal, mergulhado em seu ambiente sem transformá-lo em objecto, com a capacidade humana de objectivação e auto-consciência. Enquanto o animal reage de acordo com sua disposição fisiológica, o homem age motivado pela intuição e pode inibir impulsos de forma livre.

Scheler (2008, p. 11) também aborda a diferenciação entre seres inanimados, seres vivos e seres humanos, enfatizando a importância da interioridade e ipseidade na definição do último. Ele propõe que a pessoa humana é o centro que transcende a dicotomia entre organismo e meio. Aqui, Scheler corre o risco de cair no antropocentrismo, corrente que tende a colocar o homem no centro de todas as reflexões e referências.

Se olharmos para a história da ciência, veremos que é perigoso adoptar indiscriminadamente o antropocentrismo, pois com a revolução copernicana, o modelo antropocentrista/geocêntrico foi derrubato por rigorosos cálculos matemáticos e demonstrações físicas proporcionadas por Galileu, Newton, Copérnico e Kepler. Portanto, nem sempre é aconselhável colocar o homem no centro das coisas.

De mais a mais, Scheler (2008, p. 13) argumenta que o homem não apenas difere do animal em grau, mas também em essência, e essa distinção reside na capacidade única do homem de objectivar seu meio e a si mesmo, transcendendo os limites da experiência sensorial e da consciência animal.

 

  1. A percepção sensorial

Scheler (2008, p. 14) avança discutindo a categoria de “coisa” e “substância concreta”, destacando que somente o homem possui plenamente essa capacidade. Enquanto os animais podem responder a estímulos sensoriais, eles não são capazes de reconhecer a identidade de um objecto em diferentes contextos sensoriais. Por exemplo, uma aranha pode atacar um mosquito baseando-se em seu movimento, mas se o mosquito estiver fora do alcance visual, a aranha não o reconhecerá como o mesmo objecto. Isso demonstra a falta de uma estrutura mental que permita aos animais a noção de coisa ou substância concreta.

Outra categoria discutida por Scheler (2008, p. 14) é a do espaço. Ele argumenta que o homem possui uma compreensão única e unitária do espaço, enquanto os animais não conseguem coordenar diferentes formas de espaço sensorial. O homem é capaz de conceber um espaço global que transcende as percepções imediatas e os limites sensoriais. Essa capacidade está relacionada à sua habilidade de movimento orgânico espontâneo e à percepção de si mesmo como um ser situado no mundo.

Scheler (2008, p. 15) também examina a relação entre o homem e o tempo, destacando a capacidade humana de perceber o tempo de maneira abstrata, além de meramente reagir a eventos momentâneos. Enquanto os animais vivem no presente imediato, o homem é capaz de projectar-se no futuro e reflectir sobre o passado, construindo uma compreensão mais complexa e abstracta do tempo.

 

  1. A categoria de pessoa

Outrossim, Scheler (2008, p. 16) aborda a categoria de pessoa, argumentando que o homem, como ser espiritual, pode se objectivar e reflectir sobre si mesmo de uma maneira que os animais não podem. Essa capacidade permite ao homem transcender sua própria existência e situar-se além das limitações do mundo material. Ele é capaz de entender-se como um objecto do seu próprio conhecimento, alcançando uma auto-consciência que vai além da mera consciência animal.

Mais adiante, Scheler (2008, p. 18) enfatiza a importância do centro espiritual do homem, que está além do mundo espaço-temporal. Ele faz referência à ideia de Kant sobre a apercepção transcendental, que sugere que o espírito humano é a condição fundamental para toda experiência possível. Essa noção de um centro espiritual inacessível ao espaço e ao tempo é crucial para entender a singularidade da condição humana.

No entanto, a distinção de Scheler entre “espírito” e “psique” pode ser vista como problemática, já que a fronteira entre esses conceitos não é claramente definida e pode variar de acordo com diferentes tradições filosóficas. Outra crítica que podemos fazer é a tendência de Scheler para uma abordagem dualista, que separa de forma rígida o homem do animal e o espírito da matéria. Essa dicotomia pode obscurecer as interacções complexas e as continuidades entre humanos e animais, bem como entre aspectos espirituais e materiais da existência.

 

  1. O espírito como actualidade pura

Max Scheler (2008, p. 19) avança em sua análise sobre o espírito, destacando-o como actualidade pura, que existe apenas na livre realização de seus actos. Ele argumenta que o centro do espírito, a “pessoa”, não pode ser objectivado nem como objecto nem como coisa, mas é uma textura ordenadora de actos que se realiza continuamente. Enquanto os eventos psíquicos podem ser objecto de observação e análise, os actos espirituais, como a intenção, escapam à objectivação, pois são inseparáveis da pessoa que os realiza.

Scheler (2008, p. 19) enfatiza a impossibilidade de objectivar outras pessoas como objectos, já que a pessoa existe apenas em seus actos livres e não pode ser reduzida a uma mera observação. Ele sugere que a compreensão mútua entre as pessoas só pode ser alcançada através da participação e identificação conjunta em actos livres, especialmente através do amor espiritual, que é o oposto da objectivação e envolve uma profunda conexão com o outro.

Também, Scheler (2008, p. 19) discute a ideia de uma ordem de ideias que existe no Espírito eterno, sugerindo que as ideias não existem antes ou depois das coisas, mas com elas, sendo geradas no ato contínuo de realização do mundo. Ele argumenta que nossa co-execução desses actos não é apenas uma descoberta de um ser independente, mas uma verdadeira co-produção das essencialidades, ideias, valores e fins, atribuídos ao Logos eterno, ao amor e à vontade eternos.

No entanto, pode-se levantar algumas críticas à abordagem de Scheler nesta parte do livro. Por exemplo, sua ênfase na actualidade pura do espírito pode ser vista como excessivamente idealista, negligenciando as realidades materiais e contingentes da existência humana. Similarmente, sua concepção de uma ordem de ideias no Espírito eterno pode ser considerada metafisicamente especulativa e difícil de ser comprovada empiricamente.

Outra crítica possível é a falta de consideração pela diversidade e complexidade das experiências humanas, que podem desafiar uma compreensão unitária do espírito e da pessoa. Scheler parece pressupor uma visão universal do espírito humano, que pode não capturar totalmente as variadas formas de ser e agir encontradas na realidade humana.

 

Referências bibliográficas

Scheler, M. (2008). Diferença essencial entre o homem e o animal. In: “A Situação do Homem no Cosmos”. Arthur Morão (Trad.). Acesso em: www.lusosofia.net