Práticas etnográficas em Moçambique colonial e pré-colonial
Durante o período colonial, empreendimentos antropológicos em Moçambique foram fortemente influenciados pelos interesses coloniais portugueses. Osório & Macuacua (2013, p. 46) descrevem como a antropologia portuguesa ganhou ímpeto ao se alinhar com o projecto colonial, apresentando-se como uma “ciência global” voltada para entender o homem africano dentro do quadro da ideologia colonial. Esse empreendimento antropológico serviu para racionalizar e justificar a dominação colonial, fornecendo tanto à administração colonial quanto aos esforços missionários munição ideológica para apoiar suas agendas. Conforme atesta o seguinte ponto exposto por Osório & Macuácua:
No caso de nosso estudo [centrado em Moçambique], foi possível constatar, por exemplo, como a acção religiosa das missões católicas, embora procurando manter a estrutura dos ritos, tem, pela introdução da moral cristã, influenciado os significados que são dados à aprendizagem da vida sexual. Ficou claro na pesquisa que antigos elementos que culminavam os ritos de iniciação, nomeadamente, a relação sexual das crianças, foram substituídos pela aprendizagem sobre como “usar” o corpo. Do mesmo modo, às cerimónias de agregação foi emprestado um carácter religioso (com a realização de procissões, acompanhadas por cerimónias executadas nos locais de culto) e moderno (com as meninas usando roupas e perucas), ajustando, enquadrando e compatibilizando antigos e novos significados (Osório & Macuacua, 2013, pp. 48-49).
No mesmo nível que a religião, a educação também desempenhou um papel crucial na perpetuação das estruturas de poder coloniais. O sistema educacional colonial, conforme observado por Mirasse (2020, p 97), foi projetado para servir aos interesses do regime colonial, com faixas separadas para colonos europeus e populações indígenas. O currículo e a pedagogia foram adaptados para reforçar hierarquias coloniais e treinar as populações indígenas para papéis dentro da economia colonial, servindo efectivamente aos interesses da exploração capitalista, conforme podemos notar na seguinte exposição:
É claro que, a criação das universidades nas colónias, como é o caso de Moçambique, não significou necessariamente a inclusão dos negros, dando clara indicação de que as universidades ou o Ensino Superior, continuou privilegiando os grupos de assimilados, filhos de colonos e indianos, em deterimento dos negros (Singo, 2023, p. 154).
Além de ter servido como um instrumento de dominação política, a colonização desempenhou um papel crucial como um meio de intercâmbio cultural entre os moçambicanos e os europeus. No manual de antropologia elaborado pela Universidade Pedagógica de Moçambique (UP, 2020), encontramos o seguinte exemplo que ilustra esse fenómeno: há uma influência mútua entre o povo português e a cultura moçambicana, com casos de portugueses cujos antepassados têm origens moçambicanas, assim como moçambicanos que têm ascendência portuguesa.
Esses eventos contribuíram para a aculturação do povo moçambicano. No entanto, no contexto do colonialismo português, a aculturação teve consequências perversas para as populações e culturas locais. Por exemplo, a escravidão representou um dos actos mais cruéis e desumanos da história. Ela não apenas destruiu as estruturas culturais existentes nas aldeias africanas, mas também desumanizou o homem africano, forçando-o a fugir de suas terras e sendo submetido a tratamentos desumanos, como a deportação e a brutalização (UP, 2020, p. 100).
A própria antropologia operava dentro de um quadro eurocêntrico, funcionando como uma ferramenta para o Ocidente entender e controlar o “outro”, que sempre era o não-europeu (UP, 2020, p. 97). As culturas indígenas foram estudadas através da lente da superioridade europeia, com pouco respeito por suas próprias epistemologias e visões de mundo. Essa negação da cultura indígena serviu para justificar a exploração colonial, enquadrando-a como uma missão civilizatória enquanto perpetuava sistemas de opressão.
O período pós-colonial inaugurou uma nova era de esperança e promessa com a independência. No entanto, como observa Nguenha (1993, p. 49), esse optimismo logo foi eclipsado pelos desafios da construção nacional e pelo legado do colonialismo. A partida das populações branca e mestiça, aliada à falta de preparo entre as novas lideranças, deixou Moçambique lutando com a tarefa de construir um Estado moderno em meio a uma agitação económica e social.
Porque ainda não nos livramos completamente do colonialismo e de seu legado, ainda
temos necessidade dos cooperantes e dos especialistas financeiros [europeus] para nos desenvolvermos, pois ainda não realizamos a industrialização e a urbanização que são as marcas distintivas do nosso atraso. Politicamente ainda não construímos os quadros da democracia que são os Estados-Nações laicos e unificados. Continuamos aprivilegiar as nossas lutas tribais em detrimento da unidade do Estado (Ngoenha, 1993, pp. 47-48).
No contexto pós-colonial, o discurso se deslocou para enfrentar os legados do colonialismo e forjar novas identidades nacionais. Neste cenário, destacaram-se os discursos de Samora Machel (1978, p. 3), cujo propósito era emancipar os moçambicanos do obscurantismo e da servidão mental, combatendo todos os aspectos negativos e antiquados da antiga sociedade. Conforme atesta-se nas seguintes palavras:
Foi neste embate permanente que forjámos a nossa concepção revolucionária de Cultura Nacional e definimos, de acordo com as características específicas do nosso País, as grandes linhas de orientação para colocarmos a Educação ao serviço do Povo e da Revolução, para transformarmos a Educação na matriz do Homem Novo e da Sociedade Nova (Machel, 1978, p. 3).
Mirasse (2020) argumenta que enquanto o colonialismo foi caracterizado por uma divisão binária entre colonizador e colonizado, o mundo pós-colonial é marcado por hibridismo e ambivalência. A noção de “pós-colonialidade” emerge como um framework para entender as complexidades de navegar pela independência enquanto lida com a influência duradoura da hegemonia ocidental.
No entanto, apesar das aspirações por uma autonomia genuína, Moçambique encontrou-se enredado em sistemas de dependência económica, como destacado Mirasse (2020, p 98). A promessa de independência política não necessariamente se traduziu em soberania económica, com o país permanecendo dependente de economias externas para seu desenvolvimento. Essa dependência económica perpetuou estruturas de desigualdade e dificultou os esforços em direcção à verdadeira auto-determinação.
As práticas etnográficas no Moçambique pós-colonial, portanto, lidam com as complexidades de navegar pela independência dentro de um mundo globalizado. O legado do colonialismo continua a moldar dinâmicas sociais, políticas e económicas, influenciando a produção de conhecimento e as experiências vividas pelo povo moçambicano.
Conclusão
As práticas etnográficas em Moçambique foram profundamente influenciadas pelo contexto histórico e político de cada época. No período colonial, a antropologia serviu como ferramenta para o controlo e exploração das populações indígenas, reforçando as hierarquias coloniais e legitimando a dominação portuguesa. No período pós-colonial, a etnografia assumiu um papel na construção de novas identidades nacionais e na luta pela emancipação do legado colonial.
No entanto, o legado do colonialismo ainda se faz sentir nas práticas etnográficas contemporâneas em Moçambique. As desigualdades socio-económicas e a dependência económica de países do Norte continuam a moldar as dinâmicas sociais e as relações de poder.
Para garantir uma prática etnográfica mais justa e descolonizada, é necessário que os antropólogos se engajem em reflexões críticas sobre o seu papel na sociedade e sobre as implicações éticas e políticas do seu trabalho. É fundamental que a etnografia contribua para a construção de um Moçambique mais justo, equitativo e independente.
Referências Bibliográficas
Machel, S. (1978). Educar o homem para vencer a guerra, criar uma sociedade nova e desenvolver a pátria. Maputo: Centro de Estudos Africanos.
Mirasse, N. (2020). Manual de Antropologia geral. Maputo: Universidade Aberta ISCED.
Ngoenha, S. (1993). Filosofia africana: Das independências às liberdades. Maputo: Paulistas.
Osório, C., & Macuacua, E. (2013). Os ritos de iniciação no contexto actual: ajustamentos, rupturas e confrontos construindo identidades de género. Maputo: WLSA Moçambique.
Singo, B. O. (2023). O passado, presente e o futuro do ensino superior em moçambique-experiências e desafios para a excelência. Revista Ensino de Ciências e Humanidades – Cidadania, Diversidade e Bem Estar, v.7, n.1, pp. 153-171.
Universidade Pedagógica de Moçambique. (2020). Manual de Antropologia. Maputo: Editora Universitária da UP.