Por: Alírio Mendes
O Ralismo Platónico e a Intuição Matemática em Kurt Gödel
As proposições matemáticas, é um facto, não expressam propriedades físicas das estruturas concernidas [na física], mas propriedades dos conceitos nos quais nós descrevemos essas estruturas. Mas isto somente mostra que as propriedades desses conceitos são algo tanto objectivo e independente de nossa escolha quanto as propriedades físicas da matéria. Isto não é surpreendente, dado que conceitos são compostos por outros primitivos51, que, tanto quanto suas propriedades, nós podemos criar tão pouco quanto os constituintes primitivos da matéria e suas propriedades52 (GÖDEL, 1953/9b: 360).
A objectividade da qual falamos aqui não é no mesmo sentido que se fala da objectividade dos corpos físicos, mas Gödel usa os objectos físicos como forma de analogia para explicar que os conceitos são também objectivos. Com isto queremos indicar que os conceitos não estão no mundo físico, mas são objectivos.
Conceitos estão por aí, mas não em qualquer lugar definido. Eles estão relacionados um com o outro e formam o “espaço conceptual”. Conceitos não são a força motora do mundo 53 mas podem agir na mente de alguma maneira54 (GÖDEL apud WANG, 1996: 149).
Na tradição filosófica, geralmente, os sistemas platónicos que encontramos são de carácter idealista. No entanto, há também outros tipos de platonismo46, como é o caso do platonismo realista que, em essência, defende que as ideias existem independentemente do sujeito, i.e., são objectivas
têm existência própria. Gödel já era um platonista desde o ano de 1921, quatro anos antes de sua entrada na Universidade de Viena para estudar matemática (Cf. FØLLESDAL, 1995: 368). Durante sua permanência como um dos membros oficiais do Círculo de Viena, ele não deixou transparecer suas inclinações platonistas porque o ambiente não era propício para tal discussão. Gödel expressa publicamente seu realismo platónico – que é concretamente na matemática – em 1944 (quando não estava mais em Viena e as circunstâncias eram favoráveis), no artigo em homenagem à Russell. Nele Gödel (1944: 137) afirma que conceitos devem ser entendidos como objectos reais existindo independentemente de nossas definições ou construções.
O ponto central de toda lógica e matemática de Gödel são os conceitos47. No artigo sobre a lógica matemática de Russell, Gödel concebeu os conceitos como sendo “as propriedades e relações de coisas existindo independentemente de nossas definições e construções”48 (GÖDEL, 1944: 137). Neste sentido, os conceitos apresentam-se como extremamente relevantes para os fundamentos da matemática do mesmo modo que os corpos físicos são necessários para a obtenção de uma teoria satisfatória de nossas percepções sensórias, sendo que sua existência própria é o garante da consistência da matemática, pois, tanto na lógica de Gödel quanto na lógica em geral, as contradições não existem objectivamente – nem enquanto conceitos nem enquanto objectos físicos49 – assim , o medo de surgirem contradições na matemática não é justificado.
Gödel concorda com a afirmação de Hahn50 quando coloca que as proposições da matemática não dizem coisa alguma acerca do mundo físico, mas não concorda que elas sejam tomadas como “maneiras de falar” ou regas para falar sobre o mundo. Para Gödel Tanto os nominalistas assim como os platonistas aceitam o seguinte facto: os conceitos são formais. No entanto, as divergências surgem quando os primeiros defendem que os conceitos são criados ou construídos através de definições ou convenções, por isso são desprovidos de conteúdo; isto é, negam que os conceitos existam em algum domínio da realidade. Por outro lado, os platonistas defendem o oposto dos nominalistas: a existência objectiva dos conceitos. A questão que se coloca é: se os conceitos são formais, como é possível que eles existam objectivamente?
Gödel apud Wang (1996: 267-268) parte precisamente da característica formal dos conceitos para afirmar sua objectividade, argumentando que a formalidade da qual se trata em relação aos conceitos é no sentido de eles serem universalmente aplicáveis, não que eles não tenham conteúdo algum. E continua asseverando que aquilo que é formal não tem nada a ver com criações ou construções da mente, logo, não é subjectivo, porque está fora da mente, portanto, é objectivo.
A colocação acima explica a ideia de Gödel segundo a qual os conceitos não estão no espaço físico, mas em algum espaço entre o mundo ideal e o mundo empírico, um caso limite e abstracto55 (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 148). Porém, não se pense que somente as entidades físicas são objectos. Este é um erro que, segundo Gödel (1953/9a: 337), ocorre devido a confusão feita pelos empiristas lógicos que consideram que as proposições empíricas a posteriori são as únicas com conteúdo. Em contrapartida, colocamos que as entidades abstractas (entidades matemáticas, entidades lógicas e entidades metafísicas) também são objectos, mas não são físicos; são “seres superiores”56, vão além do físico, são seres transmateriais.
Conforme Gödel apud Wang (1996: 292) coloca, ser um objecto material significa ter uma posição no espaço físico. Neste sentido, podemos dividir os objectos na perspectiva gödeliana em três sentidos: objectos físicos, objectos conceptuais e objectos que são mónadas57. As mónadas possuem certas características idênticas às dos conceitos: elas não são materiais, mas actuam sobre a matéria, elas não estão no espaço físico, e, são conhecidas por meio de uma espécie de introspecção (fenomenologia de Husserl).
Os objectos matemáticos não estão directamente dados como os objectos físicos. É através deste facto que surge a distinção entre conceitos e ideias – uma distinção que muitos podem ignorar ou achar que não existe, porque esses conceitos aparentam ser sinónimos. Em relação ao conceito, Gödel afirma que “Um conceito é um todo58 – um todo conceptual – composto de conceitos primitivos [...]. Um conceito é um todo num sentido mais forte do que conjuntos59; ele é um todo mais orgânico, como o corpo humano é um todo orgânico de suas partes”60 (GÖDEL apud WANG, 1996: 295).
Ao passo que ideias são generalidades, i.e., não são exauríveis. Não é possível descrever uma ideia com palavras exaustivamente ou completamente claras. As ideias são sempre o ponto de partida para chegar-se aos conceitos: chegamos a um conceito porque tivemos previamente sua ideia geral. Neste sentido, ideias são mais fundamentais do que conceitos61. Quando alguém busca o conceito de conceito acaba sempre em generalidades, porque o conceito de conceito não é um conceito, mas uma ideia (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 268-269).
Para que os conceitos sejam percebidos e clarificados, é necessário o uso da intuição matemática; que é uma espécie de faculdade análoga à percepção. Esta faculdade permite-nos perceber factos e objectos matemáticos, produzindo em nós uma convicção (crença) em relação à assertibilidade62 de tais factos e objectos matemáticos. Gödel explica a intuição matemática partindo de um exemplo concreto dos objectos e dos axiomas da teoria dos conjuntos, afirmando que “nós temos também algo idêntico63 à percepção dos objectos da teoria dos conjuntos, como é concebida partindo do facto de que os axiomas forçam a si mesmos sobre nós como sendo factuais”64 (GÖDEL, 1964: 268).
Para Gödel apud Wang (1996: 235) a intuição matemática é necessária para tornar possível a manipulação de impressões abstractas em nós, assim como somos facilmente capazes de lidar com as impressões de nossos sentidos exteriores. Essa faculdade é análoga à capacidade de o homem aprender uma linguagem: ela existe, só precisa ser treinada, desenvolvida mediante certas técnicas, conforme podemos perceber através do segundo princípio da filosofia de Gödel: “a razão humana pode, em princípio, ser desenvolvida de forma mais elevada (mediante certas técnicas)”65 (GÖDEL apud WANG, 1996: 316).
Com o acima colocado, reconhece-se que a “ciência da intuição” não é infalível, porém, os erros que dela surgem não são causados por ela mesma, pois “a razão em si não comete erros [...]. Todo erro é causado por emoções e educação (implícita ou explícita); o intelecto em si (não perturbado por alguma coisa de fora) não poderia errar”66 (GÖDEL apud WANG, 1996: 298). O que tem acontecido é que as pessoas ainda não sabem lidar com a ciência da intuição porque ela exige mais cautela e mais experiência do que o uso de provas para proceder correctamente.
BIBLIOGRAFIA
FØLLESDAL, Dagfinn. (1995). Introductory Note to 1961/?. In: Kurt Gödel Collected Works vol.
III. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Robert Solovay. (1995). New York, Oxford University Press.
GÖDEL, Kurt. (1944). Russell’s Mathematical Logic. In: Kurt Gödel Collected Works vol. II. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Stephen C. Kleene, Gregory H. Moore, Robert Solovay, Jean van Heijenoort. (1990). New York, Oxford University Press.
. (1953/9a). Is Mathematics Syntax of Language?. III. In: Kurt Gödel Collected Works vol. III. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Robert Solovay. (1995). New York, Oxford University Press.
. (1953/9b) Is Mathematics Syntax of Language?. V. In: Kurt Gödel Collected Works vol. III. ed. Solomon Feferman, John Dawson Jr., Warren Goldfarb, Charles Parsons, Robert Solovay. (1995). New York, Oxford University Press.
WANG, Hao. (1996). A Logical Journey: from Gödel to philosophy. Massachusetts, The MIT Press-Cambridge.
46 Não é somente Gödel que defende o platonismo na matemática. Whitehead é também um platonista assumido. Russell também defendia o platonismo, no entanto, mudou de posicionamento com o passar do tempo.
47 Na medida em que ele afirma que o objecto da lógica são conceitos (intenções) e o objecto da matemática são extensões de conceitos (conjuntos); se eliminarmos os conceitos, não haverá lógica nem matemática. (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 247).
48 Tradução nossa.
49 Excepto no platonismo de Platão, onde todas as coisas que existem no mundo físico são meras cópias do mundo supra-sensível e que se sustenta que as contradições existem no mundo supra-sensível. Assim, podemos afirmar que o platonismo de Gödel não é um platonismo extremista como o de Platão, mas sim um platonismo moderado: nem tudo tem existência própria, exemplo: as contradições.
50 Cf. pp. 16 deste trabalho.
51 Os conceitos primitivos são: negação, existência, conjunção, universalidade, objecto, (conceito de) conceito, todo, significado, etc. (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 295).
52 Tradução nossa.
53 Para Gödel apud (1996: 288) a força motora do mundo, a “partícula elementar da vida” são as mónadas. Da mesma forma que os conceitos não estão no espaço físico, as mónadas também não estão em parte alguma do espaço físico, por isso não são objectos materiais. No entanto, são um tipo de objecto. As mónadas agem dentro do espaço físico, mas não estão no espaço físico. Elas têm uma vida interna – uma consciência (não psicológica).
54 Tradução nossa.
55 Actualmente, este espaço é também chamao de “espaço topológico”.
56 Conforme podemos ver em alguns princípios da filosofia de Gödel: (4) “Existem outros mundos e serem racionais de um tipo diferente e superior”, e (11) “Os seres superiores estão conectados uns aos outros por analogia, não por composição” (GÖDEL apud WANG, 1996: 316).
57 As mónadas são objectos absolutos, isto é, são objectos totalmente desligados dos outros objectos, não dependem de nenhum outro tipo de objecto.
58 O todo é uma unidade, e a unidade que é divisível é um todo; assim, a unidade que não é divisível não é um todo. Toda unidade é alguma coisa, e não nada. Toda unidade é uma coisa ou entidade ou ser. Objectos e conceitos são unidades e seres. Conceitos e conjuntos são unidades que são também todos; mónadas são unidades, mas não são todos. (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 295).
59 Um conjunto é uma unidade (ou todo) da qual os elementos são seus constituintes. Conjuntos são o caso limite dos objectos espaciotemporais e também de todos. Entre os objectos, existem objectos físicos e objectos matemáticos. Conjuntos puros são os conjuntos que não envolvem outros não-conjuntos – daí que o único elemento primitivo no universo dos conjuntos puros é o conjunto vazio. Conjuntos puros são os objectos matemáticos e fazem o mundo da matemática. (Cf. GÖDEL apud WANG, 1996: 296).
60 Tradução nossa.
61 É por isso que ideias não podem ser usadas em deduções precisas: elas levam sempre à teoria dos tipos lógicos de Russell. Esta teoria procura clarificar ideias de modo que alcancemos os conceitos, e evita os paradoxos extensionais. 62 Se é um facto ou um não-facto.
63 Não no sentido unívoco, isto é, não no sentido de uma comparação psicológica, mas no sentido de analogia.
64 Tradução nossa.
65 Tradução nossa.
66 Tradução nossa.