Objectivação da Vontade.
Na perspectiva do mundo como representação (primeiro livro), o corpo se dá enquanto representação na intuição, ou seja, como objecto entre objectos. Já no segundo livro, quando o autor muda da sua perspectiva, ao identificar as acções do corpo com os actos da Vontade. Ele introduz uma segunda maneira em que o corpo pode ser concebido. Como objectivação da Vontade termo original cunhado por ele, para se referir à ocasião em que o próprio corpo surge como visibilidade dessa essência. Pelo sentimento percebido dela compreende-se o próprio agir e percebe-se ao mesmo tempo como querente e agente, pois:
O ato da vontade e a acção do corpo não são dois estados diferentes, conhecidos objectivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendimento.
A acção do corpo nada mais é senão o ato da vontade objectivado [...] Por conseguinte, o corpo [...] é denominado OBJETIDADE DA VONTADE. (SCHOPENHAUER, 2005: 157).
Citando Schopenhauer, Japiassú e Marcondes (2001: 172) afirmam que a vontade é a substância íntima, o meio de toda coisa particular como do conjunto; ela se manifesta na força cega da natureza e encontra-se na conduta razoável do homem. Marcondes (2004: 241) defende que o pessimista de Schopenhauer é de um filósofo da vontade, porque a considera a própria essência da subjectividade do eu. Não podendo ela ser objecto de conhecimento, mas revelando-se ao eu.
Pessimista porque tem uma concepção negativa do indivíduo e das limitações de sua experiência. Porém, como diz Strathern (1998: 8), dos grandes filósofos, Schopenhauer foi o mais refinado e estilista desde Platão.
De acordo com isso, não há nenhuma relação causal entre querer e agir, pois ambos não são estados separados. Mas antes, uma coisa só, dada de duas maneiras. Sentimos imediatamente a vontade e percebemos pelo entendimento. O acto corpóreo, de modo que, também seria correto dizer, que querer e agir só se diferenciam na reflexão.
A identidade do indivíduo com seu corpo. então implica, que não há separação entre o movimento e a vontade, entre o querer e o agir. A essência do acto é a própria vontade que por ele torna visível o sentido da vida daquele que age.
A identidade da vontade, com o corpo é uma relação, que se dá entre, uma representação intuitiva e algo que se mostra na representação. Mas, que não é representação.
A expressão da mesma pode ser dita de diversas maneiras: meu corpo e minha vontade são uma coisa só; ou, o que como representação intuitiva eu denomino meu corpo, por outro lado denomino minha vontade visto, que estou consciente dele de maneira completamente diferente, não comparável com nenhuma outra; o meu corpo é a OBJETIDADE da minha vontade; abstraindo-se o fato de que meu corpo é minha representação, ele é apenas minha vontade etc. (SCHOPENHAUER, 2005: 160)
Os graus de objectivação da Vontade
Schopenhauer, falando das ciências, especificamente da física, identifica, que expressões como gravidade, magnetismo, electricidade. Todas as chamadas forças naturais, nada mais são do que as manifestações ou objectivações da Vontade em seus graus mais baixos.
diferentes graus expressos em inumeráveis indivíduos e que existem como seus protótipos inalcançáveis, [...] que nunca aparecem no tempo e no espaço [...]”. (Idem: 191)
Assim, apesar de existir uma única essência para todo o mundo. Schopenhauer (Idem: 192) admite, que ela se manifesta na representação através de gradações, o que explica a diversidade entre seus vários fenómenos. A Vontade objectiva-se em um grau mais baixo nas forças naturais, que dominam o mundo inorgânico; aqui ela aparece como Vontade cega e inconsciente.
Um grau mais elevado de sua objectivação acontece no reino das plantas e dos animais. O seu grau maior de objectivação encontra-se no homem, no qual a vontade apresenta-se junto como o conhecimento intuitivo e abstracto. É por esta peculiaridade do homem que a vontade pode reconhecer-se a si mesma e olhar o mundo todo como o espelho no qual ela se mostra em todo o seu ser.
Com a teoria dos graus de objectivação da Vontade, Schopenhauer pretende explicar como várias representações diferentes podem ainda ter a mesma essência. Afirma ele que essas representações, por estarem submetidas às formas que governam o mundo da representação, como o espaço e tempo (que são os princípios de individuação e que tornam possível a pluralidade), e a causalidade que rege a produção destes mesmos fenómenos no espaço e no tempo, podem então ser múltiplas e de várias espécies possíveis, podendo ter um começo e um fim (a morte ou cessação de seu fenómeno). Mas Schopenhauer defende que todas essas características das representações não atingem a Vontade em si, mas unicamente a sua objectivação.
Uma vez tendo estabelecido a Vontade como a essência una e indivisível do mundo cuja forma superior de objectivação é o ser humano, Schopenhauer introduz o seu conceito de ideia. Recorrendo a Platão, ele nomeia Ideia os graus de objectivação da Vontade, como explica neste trecho:
Entendo, pois sob IDEIA, cada fixo e determinado GRAU DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, na medida em que esta é coisa em si e, portanto, é alheia a pluralidade” (Idem: 191).
A essência em-si da Vontade
Na óptica de Fragose (2013: 39), enquanto o mundo é decifrável por nós como Vontade, ela mesma permanece misteriosa, não conceituável e objectivamente impensada, como não é objecto, ela é independente e livre do princípio de razão, logo, a ela não cabe nenhum por quê ou razão de ser; e “coisa em si é somente a vontade...” (REALE; ANTISERI, 1991: 229). Da mesma forma, é sem fundamento, sem razão e não é determinada por nenhuma necessidade, motivo ou causa, sendo, portanto, cega. Manifesta em tudo e por tudo que existe, seja fenómeno natural ou acção humana, a Vontade é aquilo que está por trás de toda e qualquer actividade, sendo a essência mais íntima de todos os fenómenos existentes, sem que ao mesmo tempo a sua própria essência seja acessível para nós.
Schopenhauer aponta a presença da Vontade em toda a natureza, como instância própria de significação dela e afirma que a “Identidade da essência de cada força que se empenha e faz efeito na natureza com a vontade, e, por conseguinte, os múltiplos fenómenos variados, que são somente espécies diversas do mesmo género, não foram considerados como tal” (SCHOPENHAUER, 2005: 169).
Isto é, a Vontade não aparece apenas no núcleo do particular, mas dá sinal de si em todo o conjunto fenoménico, manifestando-se como essência tanto da actuação cega de uma força natural quanto da acção reflectida humana. Resumidamente, tudo o que é fenómeno, seja de qualquer tipo, manifesta a Vontade e a “representação enquanto motivo não é de modo algum condição necessária e essencial para a actividade da Vontade” (Idem: 174).
A Vontade como coisa-em-si não conhece a pluralidade, nem a morte. Ela é una e indivisa e se manifesta toda em si mesma em cada fenómeno do mundo.
CONCLUSÃO
Pode-se inferir que a Vontade tem em Schopenhauer uma significação negativa, no sentido em que não se pode afirmar algo de positivo sobre ela. Isto apreende-se do fato de que Schopenhauer raramente a afirma, preferindo apontar sempre o que ela não é (representação, conceito). E o que ela não tem (substância, essência em si), pois ele já afirmou que a coisa em si é completamente diferente da representação.
Se a coisa em si é a Vontade, então esta, considerada nela mesma e apartada de seu fenómeno, permanece exterior ao tempo e ao espaço: por conseguinte não conhece pluralidade alguma, portanto é una como algo alheio àquilo que possibilita a pluralidade.
Para dar conta de como uma Vontade una, que é essência de todo o fenómeno da natureza, pode se manifesta numa pluralidade de fenómenos diferentes. Schopenhauer recorre a teoria dos graus (as ideias) de manifestações da coisa-em-si. Com esta teoria entra o problema de como estes graus estão ordenados e se implicando mutuamente.
O que dá a impressão, de uma finalidade da Vontade, o que entra em choque, com a afirmação de Schopenhauer, de que a Vontade é um impulso cego, e sem finalidade. Schopenhauer procura contornar este aparente paradoxo, com a sua teoria dos dois modos diferentes de consideração do mundo: o mundo como Vontade e o mundo como representação.
BIBLIOGRAFIA
FRAGOSE, Flora Bezerra da Rocha. Considerações sobre os livros I e II de “O Mundo como Vontade e como Representação”. Fortaleza, UECE, 2013.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. 2. ed., São Paulo, Paulus, 1991, vol. 3.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, UNESP, 2005.
STRATHERN, Paul. Schopenhauer em 90 minutos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.