PRÁTICAS ETNOGRÁFICAS EM MOÇAMBIQUE COLONIAL E PRÉ-COLONIAL

 

  1. Práticas etnográficas

As práticas etnográficas constituem métodos de investigação empregados por antropólogos e outros estudiosos das ciências sociais para examinar e compreender as diferentes culturas humanas. Essas práticas visam aproximar o pesquisador do universo social do “Outro”, tornando-o mais compreensível e familiar, ou, por outro lado, provocando uma estranheza em relação ao que é conhecido, levando o pesquisador a superar suas visões simplistas e a adoptar uma abordagem mais relacional no estudo do contexto investigado (Rocha & Eckert, 2008, p. 6).

Uma das técnicas essenciais nas práticas etnográficas é a observação participante, na qual o pesquisador se insere na comunidade em estudo, participando activamente das actividades cotidianas, interagindo com os membros do grupo e analisando seus comportamentos em diversos contextos (Magnani, 2009, p. 138). Esta abordagem, ressaltada por Malinowski (1978), possibilita ao pesquisador acessar informações que não seriam obtidas apenas por meio de entrevistas formais ou questionários.

Outro aspecto crucial das práticas etnográficas é a reflexividade do pesquisador, que implica em reconhecer sua própria influência e posição dentro da comunidade estudada e como isso pode impactar na interpretação dos dados colhidos. Conforme diz Malinowki: “na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas”. (Malinowski, 1978, p. 18). Essas fontes não estão registradas em documentos materiais estáticos, mas sim nos comportamentos e memórias das pessoas envolvidas.

Nas práticas etnográficas, o papel do pesquisador por vezes converte-se em um “estranho familiar”. Apesar de ser externo à comunidade estudada, o pesquisador por vezes estabelece relações de confiança e empatia com os participantes da pesquisa ao longo do tempo. Essas relações facilitam o acesso a informações sensíveis e a compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais do grupo (Malinowski, 1978).

 

  1. Práticas etnográficas em Moçambique colonial

As práticas etnográficas em Moçambique colonial foram caracterizadas pela imersão dos pesquisadores europeus nas comunidades locais, com o objectivo de registrar e documentar as diferentes culturas e tradições existentes no país por eles colonizado. Segundo Mattos (2020, p. 168), a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) em 1875 foi um marco significativo no processo dos estudos etnográficos, pois estabeleceu a Comissão de África e possibilitou a organização de expedições lideradas por figuras como Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, entre os anos de 1877 e 1885. Similarmente, iniciativas como a expedição de Silva Porto de Angola a Moçambique em 1853 contribuíram para fortalecer a presença de Portugal na África durante o final do século XIX e o início do século XX (Mattos, 2020, p. 168).

Conforme atesta Pinho (2022, p. 3), no período colonial, as práticas etnográficas possuíam um carácter dialéctico, pois os pesquisadores europeus, especialmente os portugueses, estudavam os moçambicanos sob uma perspectiva colonizadora, procurando enaltecer o carácter dos portugueses como bondosos, com a missão de “civilizar” os nativos, e alegando que

A chamada expansão ultramarina portuguesa [ou seja, o colonialismo perpetuado pelos portugueses] tem, portanto, um significado de alta transcendência para a história da humanidade. A ação dos portugueses não se pode confundir com os movimentos colonizadores das nações capitalistas, que instituíram um tipo de relações humanas com base na diferenciação racial, em que contrastam raça superior dominadora com raça inferior dominada (Dias apud Mattos, 2020, p. 169).

Fica evidente que, a princípio, e em maior número, os estudos etnográficos eram realizados com o objectivo de justificar e legitimar o domínio colonial, retratando as comunidades locais como “primitivas” ou “selvagens” e enfatizando a suposta superioridade da cultura europeia (Mondlane, 1975).

Apesar de tudo, uma das principais contribuições das práticas etnográficas durante o período colonial foi a documentação da diversidade cultural de Moçambique. As comunidades moçambicanas são caracterizadas por uma rica variedade de grupos étnicos, cada um com suas próprias tradições, línguas e práticas culturais. Através da etnografia, essas diferentes culturas foram documentadas e registradas, garantindo que não se perdessem com o avanço do colonialismo e da modernização (Pinho, 2022).

Com o fim do domínio colonial e o advento da independência em 1975, as práticas etnográficas em Moçambique passaram por uma transformação significativa. Os pesquisadores locais, conforme Mondlane (1975, pp. 67-71), assumiram um papel mais proeminente no estudo e documentação das culturas moçambicanas, buscando representar de forma mais autêntica as experiências e perspectivas das comunidades locais. Na mesma medida, as práticas etnográficas passaram a ser utilizadas como ferramentas para promover a justiça social e os direitos humanos, destacando as vozes e as lutas das comunidades marginalizadas.

 

  1. Práticas etnográficas em Moçambique pós-colonial

Após a independência em 1975, Moçambique enfrentou uma série de desafios e transformações em sua jornada pós-colonial. As práticas etnográficas desempenharam um papel crucial na documentação dessas mudanças e na compreensão de seu impacto nas comunidades locais. Os etnógrafos continuaram a trabalhar em estreita colaboração com as comunidades moçambicanas, buscando registrar e documentar suas práticas culturais, tradições, crenças e rituais, agora, numa perspectiva pós-colonial.

A abordagem pós-colonial questiona as hierarquias discursivas entre centro e periferia, rejeitando as oposições binárias entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Destaca-se a multiplicação de fissuras e hierarquias tanto internas quanto externas ao espaço, que atravessam o imaginário das comunidades nacionais, levando a uma descentralização ou abertura. Dentro dessa perspectiva pós-estrutural, a diferença desempenha um papel central, pois é ela que produz as desconexões críticas que demandam a multiplicação de perspectivas com uma focalização temporal, resultando em uma inversão das temporalidades modernas e hegemônicas (Pinho, 2011, p. 35).

Na pós-colonialidade, os aspectos culturais estavam “modernizados”. Por isso, como consequência disso, “as condições de representação de sua particularidade também deveriam modernizar-se” (Pinho, 2011, p. 35). Assim, o foco principal das práticas etnográficas passou a ser, mais do que a preservação da diversidade cultural do país, a reconstrução cultural e identitária do mesmo.

O imperativo da reconstrução cultural nas práticas etnográficas pós-coloniais emerge como uma reacção ao bombardeio de ideias ocidentais contra os hábitos e costumes locais nacionais durante o período colonial. O colonialismo para se impôr teve que primeiro destruir a identidade cultural do moçambicano, rejeitar-lhe uma cultura, para depois substituí-la pela europeia. Por isso se justifica a reconstrução.

Inegavelmente, após a independência, o país passou por mudanças significativas em várias áreas da vida, incluindo a agricultura (com a introdução de máquinas na produção), a educação (com a necessidade de reformular o currículo português), a saúde (precisava-se de formados em medicina) e o desenvolvimento urbano (distribuição de terras para residir). Os etnógrafos documentaram essas mudanças, analisando como elas afectaram as comunidades locais em diferentes regiões do país (Pinho, 2011).

Um aspecto importante das práticas etnográficas em Moçambique pós-colonial foi a necessidade de reconhecer e enfrentar as influências persistentes do colonialismo. Embora o país tenha alcançado a independência política, muitos aspectos do colonialismo continuaram a afectar as comunidades moçambicanas, incluindo desigualdades económicas, discriminação racial e marginalização social. Os etnógrafos trabalharam para documentar essas formas de opressão e para promover a conscientização sobre elas.

 

 

 

Conclusão

Ao longo deste estudo, pudemos observar a evolução das práticas etnográficas em Moçambique, desde o período colonial até a era pós-colonial. Durante o domínio colonial, essas práticas muitas vezes serviram como instrumentos de legitimação do poder colonial, retratando as comunidades locais de acordo com a perspectiva dos colonizadores. No entanto, mesmo nesse contexto, as práticas etnográficas desempenharam um papel importante na documentação da rica diversidade cultural de Moçambique.

Com a independência em 1975, as práticas etnográficas passaram por uma transformação significativa, com pesquisadores locais assumindo um papel mais proeminente e buscando representar de forma mais autêntica as culturas moçambicanas. Essa mudança de paradigma reflectiu não apenas uma busca por representação mais precisa das comunidades locais, mas também um esforço para enfrentar as persistentes influências do colonialismo.

Actualmente, as práticas etnográficas em Moçambique continuam a desempenhar um papel vital na compreensão das dinâmicas culturais e sociais do país. Ao documentar as mudanças e desafios enfrentados pelas comunidades locais, os etnógrafos contribuem para a promoção da justiça social, dos direitos humanos e para a construção de uma sociedade mais inclusiva e equitativa. Assim, a prática etnográfica permanece uma ferramenta essencial para a preservação e a celebração da rica diversidade cultural de Moçambique.

 

 

 

Referências Bibliográficas

Magnani, J. G. (2009). Etnografia como prática e experiência. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 15, n. 32, pp. 129-156.

Malinowski, B. (1978). Argonautas do pacífico ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. Anton P. Carr & Lígia A. Mendonça (Trads.). 2ª ed., São Paulo: Abril Cultural.

Mattos, P. F. (2020). Modos de fazer da «antropologia colonial»: a missão científica de Mendes Correia à Guiné Portuguesa (1945-1946). Estudos em homenagem a Jorge Dias, pp. 151-176.

Mondlane, E. (1975). Lutar por Moçambique. Maria da Graça Forjaz (Trad.). Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora.

Pinho, O. (2011). A antropologia na áfrica e o lobolo no sul de moçambique. Afro-Ásia, n. 43, pp. 9-41.

Pinho, O. (2022). Sobre a mentalidade africana: A Antropologia colonial na África portuguesa (1950-1960) e a antropologia do negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 38, n. 111, pp. 1-18.

Rocha & Eckert, 2008). Etnografia: Saberes e práticas. In: “Ciências humanas: pesquisa e método”. Célia R. Pinto & César A. Guazzelli (Orgs.). Porto Alegre: Universidade de Porto Alegre.