A CONTRIBUIÇÃO DA HISTORIOGRAFIA AFROCENTRISTA NA REINTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA AFRICANA
- As raízes e manifestações do eurocentrismo na historiografia tradicional
Segundo Borba (2016, p. 52), o eurocentrismo emerge como uma representação de mundo do colonizador, uma construção reflexiva sobre as capacidades e experiências europeias. Essa perspectiva enxerga a história universal através de uma lente que valoriza a experiência europeia enquanto subordina e desvaloriza as culturas e histórias não europeias.
- Manifestações do eurocentrismo
A primeira manifestação do eurocentrismo na historiografia é a omissão e a distorção da história africana. Macedo (2020, p. 267) destaca que, durante e após a era colonial, as narrativas históricas foram ajustadas para apresentar a África como um continente sem história própria antes da chegada dos europeus. Isso justificava a colonização como uma missão civilizadora, necessária para trazer progresso a um continente supostamente estagnado e primitivo. A historiografia eurocêntrica ignorou deliberadamente as complexas e avançadas estruturas sociais, políticas e económicas que existiam na África antes do contacto europeu, como os grandes reinos e impérios da África Ocidental, incluindo o Mali e Songhai.
Além das omissões, houve uma distorção activa das realidades africanas. Vieira (2006, p. 13) argumenta que as formas políticas africanas foram frequentemente descritas de maneira negativa ou simplista, transformando reinos e impérios em meras “tribos” primitivas e desorganizadas. Essa visão distorcida não apenas desumanizava os africanos, mas também apagava suas contribuições significativas para a história mundial. Um exemplo disso é a representação dos africanos nos relatos sobre a era das descobertas. As contribuições dos navegadores africanos e o comércio trans-saariano, que conectava a África ao resto do mundo muito antes da chegada dos europeus, foram amplamente negligenciados ou subestimados.
A invenção é outra técnica utilizada pela historiografia eurocêntrica para moldar a percepção do passado. Barbosa (2018a, p. 47) discute como o mito da superioridade europeia foi construído através da narrativa histórica. Elementos como a suposta barbárie e atraso das culturas não europeias foram exagerados ou fabricados para reforçar a ideologia colonial (Vieira, 2006, p. 13).
- Crítica ao eurocentrismo
A crítica ao eurocentrismo, conforme explorado por Borba (2016, pp. 58-59), envolve a desmistificação dessas narrativas e a recuperação das vozes e histórias silenciadas. Esse processo é tanto uma contraposição à universalização da experiência europeia quanto um desvelamento das novas fronteiras de conhecimento que emergem quando se reconhece a pluralidade de experiências humanas. Ao invés de uma mera rejeição do cânone estabelecido, a crítica ao eurocentrismo propõe uma reavaliação criativa e inclusiva das diversas contribuições culturais e históricas ao patrimônio global.
O silenciamento e a espoliação simbólica dos povos africanos também são elementos centrais do eurocentrismo. Vieira (2006) aponta que a diferença colonial foi muitas vezes resolvida através da negação do valor das culturas subjugadas. Este silenciamento foi essencial para manter a hegemonia colonial, uma vez que a valorização das culturas africanas poderia minar a justificativa moral para a colonização.
A crítica contemporânea ao eurocentrismo deve levar em conta a necessidade de incorporar a história e as contribuições africanas nos currículos educacionais. Vieira (2006) e Macedo (2020) defendem que o reconhecimento e a inclusão das realizações dos povos africanos na literatura didática são fundamentais para construir uma visão mais equilibrada e justa da história humana.
- A história africana sob a perspectiva da historiografia afrocentrista
A historiografia afrocentrista destaca a relevância e o protagonismo dos povos africanos, desafiando narrativas eurocêntricas que marginalizaram a história do continente. Diallo & Lima (2020) afirmam que a África é o berço da humanidade e de invenções fundamentais, com sociedades complexas desde os primeiros agrupamentos humanos até as grandes civilizações.
Barbosa (2018b) assegura que, desde a década de 1980, a historiografia africana se alinha à Escola dos Annales, valorizando fontes históricas africanas, incluindo registros orais e escritos. Por exemplo, a cidade de Tombuctu, nos séculos XII e XIV, possuía instituições educacionais comparáveis ou até mesmo superiores às europeias.
Diallo & Lima (2020) também ressaltam a importância das obras literárias pré-coloniais, como “Ta'rikh al-Sudan” e “Ta'rikh al-Fattash”, que fornecem relatos detalhados das sociedades africanas e seus eventos históricos. Esses registros são essenciais para compreender a complexidade e diversidade das civilizações africanas, como os impérios do Mali e Songhai, centros de poder, cultura e aprendizado.
- Descolonização do conhecimento histórico e a valorização da identidade cultural
A descolonização do conhecimento histórico implica uma reavaliação crítica dos paradigmas eurocêntricos que tradicionalmente moldaram a historiografia. Marin (2009, p.11) afirma que a colonização não apenas subjugou territórios, mas também impôs uma narrativa histórica que marginaliza as culturas locais. A história, como um campo de conhecimento, foi muitas vezes utilizada como uma ferramenta de dominação cultural, onde os saberes locais foram desconsiderados sob uma visão universal pretensamente objectiva, mas na verdade eurocêntrica. Essa narrativa dominante ignora a diversidade de experiências e perspectivas que constituem a história humana, perpetuando assim uma visão distorcida e incompleta do passado.
A valorização da identidade cultural, por sua vez, é uma componente essencial na luta contra a colonização epistemológica. Marin (2009, p.12) destaca a importância da interculturalidade, que reconhece e valoriza todas as culturas sem hierarquização. Este reconhecimento não é apenas uma questão de respeito, mas de legitimação das diversas formas de conhecimento que diferentes culturas oferecem.
A identidade cultural de um povo está intrinsecamente ligada aos seus saberes tradicionais e formas de ver o mundo, que frequentemente são transmitidos através de suas línguas e práticas culturais. Portanto, a revalorização dessas culturas locais e a adaptação de suas perspectivas ao contexto global são cruciais para a construção de um conhecimento verdadeiramente inclusivo e representativo.
Considerações finais
A análise das raízes e manifestações do eurocentrismo na historiografia tradicional revela uma tendencia profunda que marginaliza e distorce as histórias não europeias, especialmente a africana, para manter a hegemonia colonial e justificar a dominação cultural. A crítica contemporânea a essa perspectiva propõe uma reavaliação das narrativas históricas, destacando a importância de reconhecer e incluir as contribuições dos povos africanos e outras culturas marginalizadas.
A historiografia afrocentrista surge como uma resposta crucial a essa distorção, promovendo uma visão mais equilibrada e justa da história humana, que valoriza as fontes e perspectivas autênticas das sociedades não europeias. A descolonização do conhecimento histórico e a valorização da identidade cultural são fundamentais para superar os legados do colonialismo e construir um entendimento mais inclusivo e representativo do passado global.
Ao legitimar e incorporar as diversas experiências culturais, promove-se não apenas uma correcção das distorções históricas, mas também o fortalecimento das identidades culturais e a promoção da solidariedade e do respeito mútuo entre os povos.
Bibliografia
Barbosa, A. (2018a). Eurocentrismo e a invenção da África: Uma análise crítica da historiografia tradicional. Revista de História Contemporânea, 12(3), pp. 45-67.
Barbosa, M. S. (2018b). A perspectiva africana na História Geral da África (Unesco). Tempo, 24(3), pp.401-421. https://doi.org/10.1590/TEM-1980-542X2018v240301 .
Borba, P. (2016). Para uma teoria crítica do eurocentrismo: História, colonialismo e o resto do mundo. Revista Estudos Políticos, 11(1), pp. 51-73.
Diallo, C. S., & Lima, C. A. (2020). Revisitando a historiografia africana: subsídios para a disciplina História da África nas licenciaturas. Debates em Educação, 12(28), pp. 265-288. https://doi.org/10.28998/2175-6600.2020v12n28p265-288
Macedo, J. (2020). Descolonizando a narrativa: O papel da história africana na construção da identidade nacional. Revista de Teoria da História, 23(1), pp. 233-258.
Marin, J. (2009). Descolonização do conhecimento histórico e valorização da identidade cultural. Revista de Estudos Culturais, 15(3), pp. 45-60.
Vieira, M. (2006). A contribuição africana para a civilização global: Uma revisão crítica. Revista Estudos Sociais, 8(2), pp. 123-145.