Daniel A Ngovene

CEO DA FILOSCHOOL,LDA

O Legado de Aristóteles e a Inteligência Artificial: Explorando o Futuro Através do Passado

No ano de 335 a.C., vivendo em Atenas e actuando como tutor de Alexandre, o Grande, Aristóteles fez uma previsão que ecoa nos dias de hoje. Ele disse: "Se cada instrumento pudesse executar o seu próprio trabalho, e a palheta tocasse a harpa, então não precisaríamos de mestres" (Aristóteles, 1997, p. 125). Esta reflexão levanta uma questão profundamente filosófica: o que acontece quando a tecnologia começa a realizar o trabalho humano de forma autónoma?

Na época de Aristóteles, o termo "inteligência artificial" não existia, e a automação estava longe de ser uma realidade. Contudo, as suas preocupações sobre como a tecnologia poderia alterar a dinâmica social são tão actuais que nos sentimos a viver, hoje, a "angústia da harpa que toca sozinha". A inteligência artificial (IA) está não apenas a transformar, mas também a substituir muitos dos trabalhos humanos, uma realidade que Aristóteles, com a sua percepção sobre a natureza do trabalho e da excelência humana, já previa há quase 2.500 anos.

Automação e a Natureza Humana

Para Aristóteles, o trabalho manual não reflectia a verdadeira essência da humanidade. Em vez disso, ele acreditava que a excelência humana residia no intelecto, nas discussões éticas e nas artes. Ele via o trabalho manual como uma função relegada às "classes inferiores" da sua sociedade, os escravos, enquanto os homens livres se dedicavam à busca do saber e ao cultivo das virtudes (Aristóteles,1997, p. 101). Para ele, o ideal humano não estava no labor físico, mas na busca pelo desenvolvimento intelectual e ético.

O filósofo grego talvez estivesse a alertar-nos para o que agora experimentamos com a revolução da IA. A automação tem o poder de transformar praticamente todas as profissões, desde o trabalho industrial até funções criativas, como a música, a pintura e a escrita. A harpa hoje toca sozinha. Contudo, o que Aristóteles nos propôs, e o que podemos aprender com ele, é que isso não deveria ser motivo de preocupação, mas sim de libertação. A verdadeira natureza humana, segundo ele, nunca esteve no trabalho manual, mas na capacidade de pensar, criar e discutir questões éticas e filosóficas.

O Papel dos Filósofos

Diante desta perspectiva, os filósofos de hoje têm um papel crucial que vai além de criticar ou temer a inteligência artificial. Em vez de focarmos em previsões apocalípticas, como a ideia de que a IA "acabará com a raça humana", deveríamos voltar-nos para os pensadores do passado, como Aristóteles, e reconhecer como as suas ideias já antecipavam questões semelhantes às que enfrentamos hoje.

O medo da IA é, em grande parte, uma resposta à nossa incerteza sobre o futuro. No entanto, como Aristóteles nos ensina na Ética a Nicómaco, "a virtude está no meio", ou seja, a sabedoria reside no equilíbrio (Aristóteles, 2000, p. 67). Não devemos ser dominados pelo medo nem pela imprudência ao abraçar cegamente novas tecnologias. A IA é uma ferramenta poderosa, mas a coragem de aprender e de nos adaptarmos a ela é o que nos garantirá um futuro relevante.

Uma Nova Era de Readequação e Requalificação

Contudo, antes de nos tornarmos novamente "pensadores", como Aristóteles imaginava, haverá um período de transição. A IA exigirá uma fase de readequação e requalificação, tanto no campo profissional como pessoal. Precisaremos encontrar novas formas de manter a nossa relevância num mundo cada vez mais automatizado.

E é aqui que entra a verdadeira reflexão filosófica: como utilizamos a IA para libertar o potencial humano, e não para o aprisionar? Se a automação pode livrar-nos dos trabalhos manuais, então podemos dedicar-nos ao que, segundo Aristóteles, reflecte a nossa verdadeira natureza: a busca pela excelência intelectual e moral.

Conclusão

Hoje, estamos diante de uma encruzilhada, onde o caminho que escolhemos definirá o papel da humanidade no futuro. A IA, ao contrário do que muitos temem, não precisa ser vista como uma ameaça, mas como uma oportunidade para nos aproximarmos daquilo que Aristóteles sempre defendeu: um mundo onde o ser humano seja mais do que um trabalhador. Cabe a nós encarar esta nova era com coragem e disposição para aprender, como o próprio filósofo grego nos ensinou.

O futuro está aí, e não há tempo a perder. O desafio agora é equilibrar a nossa resposta a estas novas tecnologias, para que, no fim, a harpa que toca sozinha seja o prelúdio de uma nova sinfonia humana, baseada no conhecimento, na arte e na reflexão ética.

Referências:

Aristóteles. (1997). Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de Brasília.

Aristóteles. ( 2000). Ética a Nicómaco. Tradução de J. A. Segurado e J. Trindade Santos. São Paulo: Nova Cultural, 2000

Borneli, Junior. "Aristóteles previu o impacto da IA." LinkedIn Pulse, 2023. Acesso em 25 de setembro de 2024. Link